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A Fantástica Fábrica de Golpes
Direção: Victor Fraga e Valnei Nunes (2022)
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O dedo na ferida do golpismo
por Carlos Alberto Mattos

A fábrica referida no título desse filme é, por definição, a Rede Globo. Mas, diante de tudo o que é exposto, pode ser interpretada também como a mídia corporativa brasileira em geral, o governo dos EUA e mesmo as tradições do Brasil ou da América Latina, pródigos em golpes de estado. De qualquer modo, os diretores Victor Fraga e Valnei Nunes, jovens jornalistas brasileiros radicados em Londres, estabelecem já no letreiro de abertura o seu ponto de partida: "Este filme trata dos grandes veículos de comunicação do Brasil, sobretudo a Rede Globo".

 

O incidente da roleta de apostas instalada pelo jornal A Noite no Largo da Carioca, em 1913, para atrair a polícia e fabricar notícia, é dado como exemplo de uma longa história de manipulações midiáticas. A Noite, pertencente a Roberto Marinho, foi um modesto predecessor de O Globo, que conquistaria seu prestígio e popularidade em troca de favores e apoio ao regime militar pós-1964.

 

A partir daí, A Fantástica Fábrica de Golpes tece uma vasta argumentação coral para evidenciar as maquinações do sistema Globo – mas não só deles – no sentido de demonizar os governos do PT, derrubar Dilma Rousseff e forjar presunções de culpa contra Lula. A própria Dilma nos oferece uma análise sucinta, mas sábia, do golpe que sofreu. Vozes como as de Roberto Requião, Celso Amorim, Jean Wyllys, Adolfo Perez Esquivel, Geoffrey Robertson, Glenn Greenwald, Breno Altman, Márcia Tiburi, Chico Buarque, Benedita da Silva e Ana Mielke desvendam o cipoal de interações entre o Judiciário, a mídia e a direita parlamentar para levar ao impeachment fraudulento – usando, como destaca Greenwald, a palavra mágica "corrupção" para, seletivamente, atingir seus objetivos. Chico acusa a Globo não só de apoiar a censura durante a ditadura, como ser ela própria censora.

 

Não sem um tanto de pretensão, os diretores dizem ter feito uma continuação do famoso documentário britânico Muito Além do Cidadão Kane, de 1993, que denunciou o poderio nefasto do império dos Marinho. Várias cenas desse filme reaparecem aqui, como se ecoadas no presente. Alguns paralelos são feitos com o comportamento da mídia britânica, que pertence a milionários e persegue um ex-líder trabalhista como Jeremy Corbin. The Guardian, mesmo sendo um jornal relativamente progressista, não publicou uma entrevista feita com Dilma Rousseff logo após o golpe.

 

Um dos subtemas mais interessantes no arco proposto pelo documentário é a decepção da direita "arrumadinha" com a ascensão de Bolsonaro e seus extremistas, que eles julgavam poder controlar para seus propósitos neoliberais. Como dizem na gíria atual, "deu ruim", e a Globo passou a ser alvo do/oposição ao governo. Em contrapartida, a "religiosa" Record assumiu o papel de porta-voz do bolsonarismo, juntamente à criminalização da população negra e pobre.

 

Ressalto, ainda, duas boas discussões que chegam perto do final. Uma diz respeito à contradição da Globo entre seu relativo progressismo nas áreas de dramaturgia e cultura, e seu reacionarismo no jornalismo político. A outra se refere aos projetos de regulamentação dos meios de comunicação, entrave que tem sido trágico para a democracia brasileira. Nunca é demais chamar atenção para o fato de que as concessões de rádio e TV são públicas, ou seja, pertencem ao povo brasileiro, e não às famílias que as detêm como propriedade privada.  

 

São muitos assuntos expostos de maneira às vezes bastante didática, como a passar informações para um público estrangeiro que não estivesse acompanhando o noticiário das mídias independentes ou vendo os muitos filmes produzidos entre 2015 e 2021. Desatualizado em alguns aspectos para um filme lançado em setembro de 2022, A Fantástica Fábrica de Golpes se ressente também de uma edição confusa, com inserts e grafismos que só dispersam a atenção do espectador para o que está sendo dito – sem contar uma infeliz deturpação da voz de uma militante bolsonarista. As intervenções do locutor são aborrecidas, e a compreensível ausência de imagens das televisões é suprida por desenhos usados sem muita imaginação.         

 

Essas deficiências são em parte compensadas por uma bela disposição para a crítica aberta e sem meias palavras. A produção do filme foi viabilizada mediante financiamento coletivo, o que garantiu um distanciamento saudável para colocar o dedo no centro da grande ferida brasileira.  

>> Texto escrito especialmente para este site-blog em 3.9.2022.

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