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Filme Manifesto - O Golpe de Estado
Direção: Paula Fabiana (2017)
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As ruas e o corpo de Paula Fabiana
por Daniel Leão

Lançado no mesmo ano do impeachment, o filme de Paula Fabiana foi apresentado no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano em Havana com uma sinopse de apenas duas linhas: «Documental que denuncia el golpe de Estado ocurrido recientemente en Brasil a través de la mirada de una militante en la oposición ». Como se vê, o filme filia-se a uma das tradições do documentário latino-americano moderno: a denúncia. Ainda que em outro contexto e referindo-se à imagem de um povo invisível, Fernando Birri, cineasta argentino que funda a Escuela Documental de Santa Fé e é um dos principais nomes do Nuevo Cine Latinoamericano, escreve em texto de 1962 que a função revolucionária do documentário social, assim como do cinema realista seria a denúncia por meio do testemunho:

 

Y al testimoniar — críticamente — cómo es esta realidad — esta subrealidad, esta infelicidad — la niega. Reniega de ella. La denuncia, la enjuicia, la critica, la desmonta. Porque muestra las cosas como son, irrefutablemente, y no como querríamos que fueran (o como nos quieren hacer creer — de buena o mala fe — que son) (Birri, 1988: 16).

 

No filme de Paula Fabiana há a mesma intenção. Ao longo de seus 70 minutos, somos conduzidos em meio a multidões convulsionantes pelas ruas das metrópoles brasileiras desde as surpreendentes e massivas Jornadas de Junho de 2013 até o afastamento de Rousseff em maio de 2016. 

Diferente das demais diretoras que iremos abordar, Paula filma nas ruas. Ela não entra em palácios ou espaços restritos, que necessitam de documentos, autorizações e que dão acesso aos bastidores ou à vida privada das personagens. Do início ao fim, Paula está na multidão. É de lá que ela oferece seu testemunho. Trata-se do filme menos bem acabado de todos e, no entanto, nos oferece um dos registros de maior interesse documental e artístico.

Em todos os filmes, há uma tentativa de organizar a mise-en-scène dos protestos de um modo clássico narrativo: planos gerais, planos de composição, diferentes pontos de vista, imagens particularmente significativas que, articuladas, configuram uma imagem-asserção. Realizados a alguma distância do evento, com farto acesso a imagens de arquivo de diversas câmeras que se arriscaram nas manifestações brutalmente reprimidas pelas polícias militares estaduais, esses documentários realizam uma representação depurada, muitas vezes bastante pertinente e de bom-tom do que aconteceu. O significado que Paula atribui às manifestações em seu filme não é muito distinto.

Mas as sequências de Paula são quase todas precárias, realizadas com base em um material de arquivo de registro, grande parte dele coletada pela própria diretora. As sequências respeitam a longa duração das tomadas, quase sempre noturnas, o que evidencia as propriedades técnicas de seu aparato de registro cinematográfico. Mais do que a mise-en-scène clássico-narrativa, essas tomadas inscrevem o deslocamento de um corpo. Particularmente nas manifestações iniciais, é perceptível nessas imagens o desejo de testemunho e de registro de algo que ainda não se sabia bem o que era. Captados no corpo-a-corpo com o mundo, esses planos abruptos, ruidosos, instáveis, traspassados por cantos, gritos e ruídos de bombas de gás que estouram microfones são inseparáveis da experiência do corpo que marcha, corpo que deseja, corpo que formula e tenta decifrar o que vê ao redor de si. Não queremos dizer com isso que haja no filme qualquer inocência. Como observou Vilém Flusser, nem crianças ou turistas fotografam de forma ingênua: «Toda intenção estética, política ou epistemológica deve, necessariamente, passar pelo crivo da conceituação, antes de resultar em imagem » (Flusser, 1985: 19). No entanto, no filme de Paula está ausente aquilo que comumente se percebe nas imagens das manifestações dos demais filmes sobre o impeachment: um desejo de transcodificação simbólica da manifestação em planos que se conformem a uma certa gramática cinematográfica através da qual enunciariam o significado das manifestações para informar quem encontra-se ausente[1]. Nesse momento da filmagem, Paula não coleta imagens para espectadores.

A montagem do filme se esforça para criar uma linha narrativa através de imagens de arquivo contemporâneos às manifestações interpostas aos planos corpo-a-corpo. São quase sempre notícias que informam ou comentam os acontecimentos. Mas, de forma notável e rara, afora por um breve discurso de Lula e pelo voto contrário à abertura do processo de impeachment pelo então deputado federal Jean Wyllys, o arquivo de Paula é composto apenas por vozes e corpos femininos[2]. Tampouco há em sua montagem discursiva espaço para o contraditório. Estas características expressam uma correspondência essencial com a da pessoa-que-incorpora-a-câmera-nas-ruas.

O crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, presente em uma das raras sessões públicas do filme, em março de 2017, no Comitê Volta Dilma do Rio de Janeiro, escreve que o filme foi recebido por «uma plateia especialmente motivada para participar ativamente do que se passava na tela», reagindo com insultos às aparições de Janaína Paschoal (uma das advogadas responsáveis pelo pedido de impeachment e atualmente deputada estadual de São Paulo), de Jair Bolsonaro e de Eduardo Cunha (então presidente da Câmara dos Deputados) e com aplausos às imagens de Dilma Rousseff, Lula e da deputada federal Jandira Feghali (Mattos, 2017). É possível por esta afirmação observar o peso que fatores contextuais têm na espectatorialidade dos filmes (Staiger, 1992). Como observou Mattos, «a intenção da diretora Paula Fabiana foi organizar uma memória dos fatos e reações da militância» em um filme em que predomina «o ponto de vista do participante» (Mattos, 2017).

A escolha por não utilizar uma narração contribui para que o filme propicie uma singular partilha sensível. Paula se coloca à mesma altura daquelas com quem marchou e, de certo modo, à mesma altura de quem assiste sua obra. Isso porque a combinação de uma câmera-visão profundamente ancorada em um corpo e do som-escuta de pessoas explicitamente situadas no mesmo espectro político não se dá através de uma conjugação narrativa ou argumentativa que busquem o convencimento dos indecisos, nem se estruturam com fins a uma projeção espectatorial. Ao contrário, tudo aqui é precário como as imagens registradas. Mesmo as imagens de arquivo, por serem retiradas de plataformas de compartilhamento de vídeos e não remetidas pelas emissoras, preservam a baixa resolução e alta compressão imagética dessas plataformas. Além disso, recorrendo-se a um acervo pessoal registrado no calor dos acontecimentos, Filme Manifesto é atravessado por uma série de atordoamentos dos quais não abre mão. Uma sequência situada no final da obra nos mostra um grupo de mulheres numa das rampas que dão acesso ao Palácio do Alvorada, ainda a residência oficial da presidenta Rousseff. Elas estão sentadas, bloqueando a rampa. Bloqueiam-na de quem? Por que policiais militares as retiram com brutalidade, disparando spray de pimenta em seus rostos? De quem partiu a ordem? Também no filme este acontecimento é uma cena absurda, sem explicação. É claro que ele mimetiza o que Paula pensa a respeito da retirada abrupta, violenta e absurda de Dilma da presidência, mas aqui a realidade é mostrada de tal modo que seu significado pretendido na montagem não subjuga a imagem-atordoada do tempo presente da filmagem.

Laurent Roth (Roth, 2005) externou uma perspicaz preocupação com o futuro do cinema documentário a partir da proliferação de filmes decorrentes da mobilidade da câmera DV no início do século 21. Ressaltando a possibilidade de que tais câmeras impusessem uma volta aos preceitos do cinema direto, da ideologia do visível e um desprezo à linguagem cinematográfica, Roth defendeu um uso mais elevado dessa tecnologia e das possibilidades que ela inaugurava (a leveza do equipamento, a facilidade do registro sonoro), uma revolução artesanal do cinema por meio uma apropriação humanista que o ressignificasse como arte da mão e da palavra. Além dos filmes de Johan van der Keuken exemplificados em seu texto, parece-me que Os Catadores e Eu (Agnès Varda, 2000) e Um Passaporte Húngaro (Sandra Kogut, 2001) se encontram dentro desta revolução artesanal. Arriscaríamos dizer que por não utilizar a linguagem do cinema de modo a capturar sua imagem, o filme de Paula participa dessa revolução: em seu filme, tudo é tão-denúncia quanto-gesto, seu gesto e a realidade escapam à narrativa da representação. Talvez possamos dizer sobre isso aquilo que Judith Butler diz a respeito do humano:

 

the human is indirectly affirmed in that very disjunction that makes representation impossible, and this disjunction is conveyed in the impossible representation. For representation to convey the human, then, representation must not only fail, but it must show its failure. There is something unrepresentable that we nevertheless seek to represent, and that paradox must be retained in the representation we give (Butler, 2004: 145).

 

            A partir deste ensaio de Butler, Ilana Feldman (2017) descreve a possibilidade «de uma forma de politização que tenha como fundamento a vulnerabilidade e a precariedade presente em todos nós», vulnerabilidade que teria um compromisso com o porvir e nos conduziria à sua potência.

 

[1] De acordo com Vilém Flusser, quem se utiliza de uma câmera fotográfica se assemelha a quem, caçando, se move « na floresta densa da cultura », procurando ao mesmo tempo « driblar as intenções escondidas nos objetos [culturais] » por meio de uma « permutação com as categorias do aparelho » (Flusser, 1985: 18-19): « o fotógrafo [sic] somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito na aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos. De maneira que o aparelho programa o fotógrafo para transcodificar tudo em cena, para magicizar tudo. Em tal sentido, o fotógrafo funciona, ao escolher sua caça, em função do aparelho. Aparelho-fera». (Flusser, 1985: 19)

 

[2] Esta busca de Paula faz com que seu filme preserve um significativo plano, ignorado por todos os demais documentários, no qual a então Ministra das Mulheres, Nilma Gomes, sentencia: «o próximo governo será formado por um ministério de homens brancos».

Birri, F. (1988) Cine y subdesarrollo. Leduc, P. & López, J. (Ed.) Hojas de Cine: Testimonios y documentos del nuevo cine latinoamericano: volumen II. Cidade Do México: Ed. Universidad Autónoma Metropolitana, p. 12-17.

Butler, J. (2004). Precarious life: the powers of mourning and violence. Londres: Verso.

Feldman, I. (2017). Do pai ao país: o documentário autobiográfico em face do fracasso das esquerdas no Brasil. Holanda, K. & Tedesco, M. C. (Ed.). Feminino e plural: Mulheres no cinema brasileiro. Campinas, SP: Papirus. [Recurso eletrônico]

Flusser, V. (1985) Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Editora Hucitec.

Roth, L. (2005). A câmera DV: órgão de um corpo em mutação. Mourão, M. & Labaki, A. (Ed.) O cinema do real (31-55). São Paulo: Cosac Naify.

Staiger, J. (1992). Interpreting films. Princeton: Princeton University Press.

>> Publicado originalmente na revista Cinema & Território nº 6, 2021, como parte do artigo O Impeachment e os filmes: a derrubada de Dilma Rousseff em três narrativas femininas

Leia também:

Memória do golpe, por Carlos Alberto Mattos

Flusser
2 Daniel Leão
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