top of page
Abismo Tropical
Direção: Paulo Caldas (2019)
O dia em que a noite começou, por Carlos Alberto Mattos
Entre a angústia do futuro e a certeza do passado, por Bruno Carmelo
Abismo Tropical 1.jpg
O dia em que a noite começou
por Carlos Alberto Mattos

Em meio ao farto acervo de filmes sobre a situação brasileira nessa encruzilhada difícil, Abismo Tropical assume uma vertente bastante particular. Não mais os grandes dossiês do processo político, a recuperação de materiais de arquivo, a profusão de talking heads, a captação de falas nas ruas, nem a costumeira exposição dos dois lados do espectro ideológico. Paulo Caldas fez um filme em primeira pessoa, uma espécie de desabafo sobre o dia em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil.

 

A câmera e o drone operaram somente na Avenida Paulista, no dia 28 de outubro de 2018. Por 24 horas, da madrugada à meia-noite, as lentes vasculham a artéria central de São Paulo – vale dizer do Brasil – em busca de imagens que condensem o início de um pesadelo. Não um pesadelo que se passasse nos corredores do Congresso ou nos palácios de Brasília, mas nas calçadas, nas pistas, no célebre vão do MASP. Um sonho ruim protagonizado por gente comum. O espocar mais franco do fascismo popular brasileiro.

 

De madrugada, os sem-teto, o gari comendo alguma coisa tirada do lixo, os primeiros aventureiros das corridas matinais. Com a chegada da manhã, as filas para votação começam a ser povoadas por gente sonolenta que olha para a câmera como zumbis. A tarde chega, e a corja bolsonarista já expõe suas unhas ao ar livre. Os gestos de arma, a exposição de algemas, os fogos de artifício, as bandeiras e camisetas com a efígie do candidato de extrema-direita formam o conjunto visual do ódio.

 

Paulo Caldas não inseriu nenhuma cena do lado progressista. Queria apenas estampar o inominável em câmera lenta, deixando que os sons se distorcessem também, junto com o ritmo das imagens. É uma observação pesarosa e perplexa, eivada de memórias dos golpes que o país sofreu em 1964 (ano em que ele nasceu) e 2016. Quando pequeno, Paulo tinha vergonha do pai coronel do Exército, mesmo sendo ele de esquerda e tendo sido preso por se recusar a prender o governador da Paraíba em abril de 1964. Agora tem medo do que pode se tornar o país.

 

"Quem é essa gente?", pergunta-se. "Não me reconheço no outro", deplora. Em dado momento, recorda Fernando Pessoa: "Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir". Com suas imagens morosas em preto e branco, Abismo Tropical apreende uma grande violência pairando no ar da Avenida Paulista. Vem a noite do dia 28, quando brutamontes e patricinhas bolsonaristas explodem em festa. Uma alegria agressiva. Alegria de morte. Uma selvageria que ganha contornos inacreditáveis na imagem de uma criança esmurrando seguidamente um pixuleco do Lula.

 

O dia vai terminando, a polícia se apodera dos espaços. Um domingo para (não) esquecer. Paulo sentia que ali começava uma longa noite. Restava correr aos braços dos amigos para resistir. Seu filme é amargo como fel visual, mas a reflexão do diretor, concebida naturalmente depois do pesadelo consumado, de alguma forma nos consola. Estamos juntos e somos muitos.  

>> Texto escrito especialmente para este site-livro em 20.5.2022.

Leia também:

Entre a angústia do futuro e a certeza do passado, por Bruno Carmelo

bottom of page