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Brasil em Transe (What Happened to Brazil?)
Minissérie. Reportagem e entrevistas: Kennedy Alencar (2018)
Eufemismos e aspas para a BBC, por Carlos Alberto Mattos
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Eufemismos e aspas para a BBC
por Carlos Alberto Mattos

A minissérie idealizada pelo jornalista Kennedy Alencar para a BBC World News foi realizada em 2018 e peca por excesso de cautela na interpretação e projeção dos fatos narrados. Na realidade, não há propriamente uma análise, mas uma retrospectiva factual do cenário político entre os governos Lula e a eleição de Jair Bolsonaro.

 

São três episódios. No primeiro, O Sonho Acabou, fala-se dos sucessos do período em que Lula presidiu o país – incremento do mercado interno, mobilidade social, fartura de empregos, crescimento econômico – mas, desde o início, fazendo a contraposição com os governos Dilma, que teriam "arruinado a economia". Repassa-se a onda de protestos de 2013, estimulada pela repressão policial e pela rejeição aos investimentos para a Copa do Mundo de 2014. No âmbito da reação conservadora às conquistas sociais anteriores, nenhum destaque é dado à inserção da extrema-direita nas manifestações que visavam derrubar Dilma.

 

A Operação Lava Jato é alvo de seguidos elogios, conduzida que era por um "juiz jovem e carismático" chamado Sérgio Moro. Embora o segundo episódio mencione as ilegalidades cometidas por Moro e a espetacularização dos procedimentos, é compreensível que não haja uma condenação direta dos métodos lavajatistas, uma vez que a Vaza Jato ainda não havia abalado a imagem da operação. Ainda assim, a hesitação em caracterizar o golpe parlamentar-midiático só se justifica por um possível desejo de parecer isento, quem sabe por exigência da BBC. O fato é que o título do episódio, A Lava Jato e "o Golpe", traz as aspas de quem não quer se comprometer com a afirmação do que já estava mais que claro em 2018. O eufemismo impera no texto do narrador quando sustenta que Dilma foi derrubada de maneira "discutível".

 

Retorna aqui a insistência editorial em culpabilizar a presidente com asserções genéricas como "o povo brasileiro havia perdido a confiança em Dilma". A exemplificação disso fica a cargo de um taxista antipetista que esgrime os argumentos típicos da classe média golpista da ocasião. A contrapartida, mais tímida, é fornecida por um estudante.

 

Na costura das entrevistas, porém, a definição do golpe fica indicada, seja diretamente pela própria Dilma em depoimento para a série, seja indiretamente pela economista Laura Carvalho ("as pedaladas fiscais foram um pretexto para o impeachment"), ou pelo ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot ("foi uma desculpa"). Por sua vez, o Ministro Ricardo Lewandowski reitera a opção do Supremo Tribunal Federal pela lavagem de mãos no episódio ("Se foi golpe ou não, os historiadores e sociólogos poderão avaliar no futuro").

 

O terceiro episódio, intitulado Nação Dividida, ocupa-se do governo Temer e da campanha eleitoral de 2018. Dilma é ouvida definindo a atitude de seu vice e traidor: "Ele se ajoelhou diante dos interesses", referindo-se naturalmente ao mercado e ao entreguismo. Comentam-se os transtornos do período, com o Congresso aliviando Temer das evidências de apoio à corrupção, a morte de Marielle Franco, as pressões militares pela prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. O texto encampa a versão de que o candidato "foi esfaqueado" em Juiz de Fora e "salvo pelos médicos", além de caracterizar suas falas tenebrosas como apenas "discursos polêmicos".

 

Conhecendo-se o perfil de Kennedy Alencar, é lícito supor que a série não espelha integralmente os seus pontos de vista. Ele não tem crédito de diretor, assinando apenas como repórter, entrevistador, corroteirista e um dos produtores executivos. O resultado final certamente foi fruto de negociações com a BBC no sentido de fornecer uma visão pretensamente jornalística dos acontecimentos, sem avançar em comentários que indicassem uma tomada de partido mais clara. Brasil em Transe tem os traços característicos de produção televisiva, com trilha sonora atmosférica, ritmo ágil e um esforço por ilustrar cada aspecto com a imagem mais sintética e demonstrativa.       

 

A série se encerra com especulações sobre o governo Bolsonaro, que então se iniciava. Os cuidados com as palavras, muitas vezes excessivo, trai talvez a precaução diplomática de uma TV estrangeira quanto a adjetivar um processo que, para nós, brasileiros progressistas, era mais que substantivo.

 

>> Texto escrito especialmente para este site-livro em 25.6.2022.

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