Democracia em Vertigem
Direção: Petra Costa (2019)
Como um país muda de pele, por Carlos Alberto Mattos
Mesmo se não levar o Oscar, Petra Costa já venceu, por Sergio Augusto
O desafio de narrar o Brasil, por Joana Salém Vasconcelos
Golpistas em vertigem, por Jorge Furtado
Como um país muda de pele
por Carlos Alberto Mattos
Num dado momento de Democracia em Vertigem, Petra Costa diz que não sabe como contar o que vai começar a contar. É uma passagem sobre o envolvimento da família dela com o poder. A construtora Andrade Gutiérrez é uma das maiores empreiteiras do país e tem seu nome em placas instaladas no Palácio do Alvorada durante os governos Collor e Lula por "ações voluntárias" de restauração. Os governos entram e saem, mas o poder econômico estava sempre por lá.
Aos olhos de Petra, alguma coisa parecia mudar com a Operação Lava Jato. Grandes empresas, ou seja, parte da elite estava sendo destruída num projeto de aniquilação da esquerda. Em troca de quê? É o que o filme e todos nós nos perguntamos nos dias de hoje. A análise que esse esplêndido documentário faz da situação desde 2013 vai muito além do processo de derrubada do PT e ascensão da extrema direita. O que vemos é o destampar de uma caixa de Pandora. É o achincalhamento da democracia através do golpe institucionalizado e da reiteração de uma vocação nacional para a escravidão, o golpismo e a selvageria.
"Não sei como contar isso", diz Petra. Talvez houvesse pensado assim inúmeras vezes nos últimos anos. O desafio, de fato, era gigantesco. Como não se limitar a um resumão de fatos já conhecidos? Por muito tempo nos perguntávamos até onde ia seu filme, que nunca ficava pronto? Petra parecia não parar nunca de filmar. Como iria resolver essa narrativa sem fim?
Ao que tudo indica, ficou claro para ela – como para qualquer pessoa inteligente – que o fim de todo aquele processo seria mesmo a prisão do Lula, objetivo maior da Lava Jato, cada vez mais claro agora com os vazamentos do Intercept. Assim, o ato de entrega de Lula à PF em São Bernardo do Campo virou o ponto nevrálgico do filme, onde ele começa e acaba. O resto foram os meios para se chegar a esse fim.
Democracia em Vertigem joga com dois trunfos inestimáveis. Um deles é a autoinserção da diretora no discurso narrativo, plenamente motivado pelo fato de seus avós maternos pertencerem à elite conservadora do país e seus pais terem lutado contra a ditadura e serem de esquerda. Petra se identifica com os pais e não dissimula isso para chegar ao que seria uma visão pretensamente distanciada das paixões em jogo. É do seu ponto de vista de ruptura com os antepassados mais distantes que ela constrói esse olhar de perplexidade e mesmo horror diante da democracia agonizante. Para quem nasceu na primeira metade dos anos 1980, praticamente junto com a redemocratização do país, e deve seu prenome a Pedro Pomar, fundador do PCdoB assassinado pela repressão, ver a chegada de Bolsonaro ao poder é como morrer um pouco.
Petra conduz a história da ascensão de Lula e do PT em paralelo ao seu próprio crescimento e a suas alegrias, procurando entender os caminhos dos governos petistas sem deixar de criticar as alianças e práticas políticas condenáveis adotadas. Mais uma vez, é Gilberto Carvalho o autor de reflexões lúcidas e serenas sobre os erros do partido enquanto estava no poder. A cineasta envolve ainda sua mãe, Lian Andrade, numa conversa com Dilma, uma vez que ambas estiveram encarceradas no presídio Tiradentes, o tal Torre das Donzelas.
A cumplicidade desse encontro exemplifica o outro grande trunfo do filme, que são as cenas exclusivas de momentos íntimos dos protagonistas. No encontro com Lian, Dilma admite que não queria ser presidente para não perder "a imensa liberdade de ser anônima". Aceitou porque Lula não lhe deixou opção. "Ele faz política de fato consumado", diz ela.
Petra contou com o cinegrafista adicional dos sonhos de qualquer um que estivesse documentando esses fatos: Ricardo Stuckert, o fotógrafo oficial de Lula. Por conta disso, e do acesso que ela mesma conquistou, vemos flagrantes preciosos de Lula cumprimentando Dilma no instante em que foi anunciada sua primeira eleição (e ela dizendo "o senhor inventou essa"); o último dia de Lula e Marisa no Planalto em 1.1.2011; Lula falando ao telefone que ia ser nomeado ministro da Casa Civil (depois vetado pelo STF); e sobretudo os derradeiros momentos de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo antes de se entregar à PF, medindo a pressão ao lado do colchão onde dormiu sua última noite de relativa liberdade.
Na extraordinária montagem do filme (feita a 12 mãos mais 18 adicionais!), dois momentos se destacam pelo teor dramático e de revelação. No primeiro, Petra chama atenção para a tensão e a coreografia de Michel Temer na cerimônia de posse da Dilma, evidenciando já ali seu alheamento em relação ao que se passava. No outro, a edição destaca o olhar misto de indignação e desafio de Dilma diante de um Congresso faminto para metralhá-la na audiência do impeachment.
Quando permite a Bolsonaro exibir sua fanfarronice autoritária no seu gabinete decorado por fotos de presidentes generais, Petra conclui a sequência com uma consideração lancinante: "Grande parte da minha família votou nele. Na cosmologia de Bolsonaro, militantes como os meus pais deveriam ter sido assassinados".
Essa implicação pessoal e familiar traz o filme do campo jornalístico para a esfera do sentimento político, que não é matéria de pouca nobreza. Na sua voz mansa e doce – voz de quem, como em Elena, fala de alguém ou alguma coisa que amava e que perdeu –, Petra faz a história de um desencanto. O país muda de pele a olhos vistos em 1 hora e 53 minutos de filme. Da esperança democrática passamos a uma forma constrangedora de autoritarismo popular que poucos de nós julgávamos existir adormecido.
Em termos de linguagem documental, Democracia em Vertigem difere bastante de O Processo, de Maria Augusta Ramos, que trabalhava com a observação não textualmente opinativa, embora claramente comprometida com o lado ultrajado no golpe. É interessante que, numa conversa com José Eduardo Cardozo em pleno processo, Dilma se compare com Joseph K., o personagem de Kafka, com a vantagem de ter um advogado.
São dois filmes absolutamente complementares, como se o de Maria Augusta fosse uma costela retirada do de Petra e ampliada em suas minúcias. Numa hora em que a parcialidade da Lava Jato fica escancarada pela Vaza Jato e o herói Moro descobre seus pés de barro, vai se completando a paisagem cinematográfica sobre esses anos de farsa e ódio. Petra Costa nos traz – e para dezenas de países ao mesmo tempo pela Netflix – uma percepção pessoal e à altura da dramaticidade do que temos vivido.
>> Publicado originalmente no blog carmattos em 20.6.2019
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