Desde Junho
Minissérie. Direção: Julia Mariano (2016)
Novos atores midiáticos, por Xandra Stefanel
Os midiativistas – agora por eles mesmos, por Carlos Alberto Mattos
Novos atores midiáticos
por Xandra Stefanel
Em junho de 2013, as ruas do país começaram a fervilhar com consecutivas e numerosas manifestações. No início, suas pautas pareciam trazer reivindicações mais à esquerda, mas o cenário foi ficando cada vez mais confuso, e logo os atores sociais começaram a mostrar suas armas. A mais potente de todas – e talvez a mais decisiva nesta batalha – foi a grande imprensa. Do outro lado da trincheira, movimentos sociais eram vistos e ouvidos graças à atuação dos midiativistas, que se arriscavam e se desdobravam para registrar o que os grandes grupos de comunicação insistiam e ainda insistem em esconder.
É exatamente a atuação desses novos atores midiáticos o tema central da série documental Desde Junho, da diretora Julia Mariano. Dividida em cinco episódios de 27 minutos, a série se debruça na experiência do midiativismo e no surgimento de novas tecnologias de comunicação, além de abordar como a mídia livre de certo modo inaugurou esta nova forma de o cidadão se relacionar com a informação que produz e consome.
A diretora, que atuou intensamente como midiativista no Rio entre 2013 e 2014, resolveu em 2015 resgatar imagens de manifestações, ocupações, assembleias e greves na rede, e começou a analisar os diferentes olhares registrados e difundidos sobre 2013 na internet. Ao rever as imagens de forma dispersa e desorganizada, Julia passou a se questionar quanto às narrativas possíveis sobre as jornadas de junho. Foi quando decidiu participar de um edital de produção audiovisual do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), BRDE e da rede pública de televisão EBC.
“Este fomento tinha como finalidade renovar a programação da TV pública, e a série foi concebida e realizada com esse objetivo: construir uma outra narrativa possível de 2013 para ser exibida em TV aberta e pública. Porém, após o golpe de Temer e seu grupo, a série foi engavetada pela EBC. Entregamos os cinco episódios prontos para exibição em junho de 2017, mas apenas recentemente a série foi ao ar, já no final do tempo de contrato, e apenas em dois canais: TVE Bahia e TV Brasil (RJ), sendo que no Rio de Janeiro o horário de exibição foi 3:15 da manhã, num claro movimento de censura velada”, contou Julia Mariano por e-mail.
“Esse engavetamento nos impulsionou a construir um lançamento da série online, organizando exibições em diversas cidades do Brasil e do mundo, propondo exibições com debates, num movimento de fomentar, junto com a difusão da série, novas reflexões sobre 2013 e possibilidades de ampliação da leitura do nosso momento político atual", conta a diretora.
Da rede para as ruas. E vice-versa
Notícias falsas, ódio, intolerância, descontrole… A internet se mostrou um ambiente extremamente hostil nos últimos anos. A professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Esther Solano afirma em um dos episódios que a mesma rede que espalha as chamadas fake news tornou-se um importante instrumento democrático. “A Primavera Árabe foi organizada pela internet. Então, você tem uma plataforma que pode ser muito bem um instrumento democrático muito poderoso. Por outro lado, o que vemos acontecendo no Brasil, sobretudo neste último período, 2014, 2015, 2016, é que (…) o Facebook é a principal ferramenta pela qual a população está se mobilizando, tanto a esquerda quanto a direita. Mas o Facebook atua como uma bolha ideológica, como um gueto ideológico: só compartilha e recebe informação daquele que pensa como você.”
Por outro lado, a comunicação produzida pelos midiativistas furou barreiras da imprensa “comercial”, que foi obrigada, por exemplo, a levar ao grande público temas geralmente negligenciados, como é o caso do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, pela polícia no Rio, como relembra a série. Os episódios reforçam esta importante maneira de combater o monopólio da comunicação e deixam claro que é preciso ir além. “Para conseguir de fato ter uma vitória efetiva na linha da democratização da informação, a gente precisa incluir as grandes redes de concessão pública de televisão e também os grandes monopólios de redes sociais que pegam essa grande riqueza que é a internet e transformam em um ‘cercadinho’ privado de seus interesses e patrocinadores, dos seus lucros privados”, declara Daniela Fichino, da ONG de direitos humanos Justiça Global.
Julia Mariano afirma que há muita disputa a ser feita. Prova disso é a censura velada da qual sua série foi vítima e a impossibilidade de lançar novas temporadas que reflitam sobre a situação política e social do país a partir da comunicação. “Infelizmente não há previsão de outras temporadas, não descarto a possibilidade, mas as novas regras do Ministério da Cultura e da Ancine dificultam em muito o acesso a fomento e patrocínio para produtores independentes de pequeno porte, que é o meu caso. Há uma mudança drástica em curso que visa, abertamente, direcionar a maior parte dos recursos financeiros para produções comerciais de grandes produtoras, apostando nos grandes ‘players’ e em filmes ‘comerciais’. Política que destoa completamente da anterior, que fomentava a capilarização e desregionalização dos recursos. Essa nova política cultural está alinhada à lógica do governo golpista, de ‘restituir’ o poder a quem sempre o teve. E tendo em vista a censura velada sofrida pela Desde Junho, dentro da rede EBC, fica claro pra mim que pontos de vista como o que defendo na série não são interessantes, muito menos fomentados, pelo atual governo brasileiro”, lamenta.
Por outro lado, é exatamente por essas as razões que Julia insiste que não se pode deixar paralisar. “2013 é o tabu do golpe. Muitas pessoas relacionam as jornadas de junho ao crescimento da direita e ao estopim do processo de impeachment. Eu tento extrapolar um pouco essa leitura de junho de 13. Sem dúvida, esquerda e direita compartilharam a rua naquele ano e logo a disputa, tanto nas ruas quanto nas redes, se acirrou. A pergunta é por que a esquerda recuou da rua depois disso? Como a repressão policial e a perseguição midiática a ativistas ajudou nesse recuo? E como a produção de (contra)informação se firma como um potente campo de disputa? Refletir sobre o processo a partir da disputa de sentidos, do que já se construiu e desconstruiu desde 2013 revela que a crise segue sendo a mesma: a da representatividade política. Temer é ainda mais impopular do que Dilma. A descrença na política é avassaladora. Mas defendo que a direita não ‘venceu’ como muitos afirmam. Ela sim ‘saiu do armário’, e isso assusta, mas por outro lado penso que é importante saber que vivemos em um país conservador, extremamente repressor e autoritário. Isso é o Brasil. Um país onde a cada 23 minutos se mata um jovem negro, um país onde a expectativa de vida de transexuais não ultrapassa os 35 anos e onde mais se mata ambientalista no mundo! Esse processo da crise deixou isso em evidência, e temos que saber responder a isso. Não podemos nos quedar paralisados. A instabilidade política atual é preocupante, sem dúvida. Mas ainda há disputa a ser feita.”
>> Publicado originalmente no site Rede Brasil Atual em 9.6.2018.
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