top of page
Diário Ordinário
Direção: Paula Fabiana  (2019)
Ensaio de romance em meio ao caos, por Carlos Alberto Mattos
Diário Ordinário.jpg
Ensaio de romance em meio ao caos
por Carlos Alberto Mattos

Depois de realizar Filme Manifesto – O Golpe de Estado, Paula Fabiana engendrou Diário Ordinário, um filme híbrido de documentário e ficção. O ator Murilo Sampaio faz Tiago, ativista que tenta uma carreira na mídia independente ao transmitir para seu canal as manifestações que se seguiram ao golpe de 2016. "A revolução seria compartilhada nas redes sociais", prenuncia. O título do filme seria o mesmo do seu blog, onde postava suas imagens e impressões sobre o movimento Ocupa Minc e os protestos realizados no centro do Rio de Janeiro.

 

O efeito de realidade é poderoso, a ponto de passarmos boa parte do filme sem perceber que se trata de um projeto de ficção gravado em meio ao caos da cidade durante aqueles dias de 2016 e 2017. O fato de Murilo ser um ator até então pouco conhecido contribuía para a impressão de que tudo ali era realidade. Aos poucos, porém, notamos que Tiago também é filmado com razoável frequência, o que vai fazendo dele não só um narrador em primeira pessoa, mas também um personagem em "terceira pessoa".

 

Em dado momento, ele é agredido e perde sua câmera, que será substituída por outra comprada de segunda mão. Em outra passagem, ele conhece Marina (interpretada pela atriz e ativista Taís Alves, ocupante real do Minc), por quem sente imediata atração e a quem associa com a música Tigresa, de Caetano Veloso. Daí em diante, a cobertura autêntica das manifestações, reprimidas com violência pela Polícia Militar, se mescla habilidosamente com a vivência de um ensaio de romance por Tiago e Marina. Eles ora se perdem nas ruas, ora se reencontram, se realimentam de coragem estando juntos. 

 

A essa altura, ambos são os personagens centrais, embora o filme siga documentando a cidade em polvorosa. A suposta câmera de Tiago ocasionalmente se fixa em algum manifestante, como o rapaz mudo que protesta à sua maneira ou a senhorinha negra compungida no ato contra a morte de Marielle Franco. As bombas de gás, as balas de borracha e as fogueiras do ativismo adensam o ar e causam cenas dramáticas em áreas de socorro.

 

A câmera sempre trêmula (às vezes movimentada randomicamente)e as imagens fora de foco traem uma certa fetichização da filmagem improvisada em situações tensas. O som é precário, descentrado, com as palavras de ordem se destacando dentre a massa sonora: "Fora Temer!" "Eu quero o fim da Polícia Militar", etc. 

 

Esse exercício de hibridismo de linguagens termina por ressaltar o teor romântico que animava boa parte da militância contra o golpe. Quantos de nós sabíamos que éramos fracos para deter a sanha dos que chegavam para desmontar o país e retirar nossos direitos, abrindo caminho para o fascismo?  Ainda assim, estávamos nas ruas gritando que "não passariam". Estávamos na rua em defesa de uma ideia de amor – pela justiça, pela liberdade e pelos outros que estavam também ali. Como Marina ou Tiago.

>> Texto escrito especialmente para este site-livro em 26.4. 2022.

bottom of page