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Encantado - O Brasil em Desencanto
Direção: Filipe Galvon (2020)
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Pequena história da degradação nacional 
por Carlos Alberto Mattos

Onde está o encantamento que nos fazia sorrir nos anos Lula? Para onde foi a esperança de que o Brasil pudesse superar minimamente a herança escravocrata? O que foi feito do nosso orgulho naquele período luminoso? Quem responde a essas perguntas são, principalmente, cabeças jovens formadas naquele tempo, reunidas por Filipe Galvon no documentário Encantado - O Brasil em Desencanto.

Trata-se da versão especial para o Brasil (atualizada e estendida para longa metragem) de um média que passou na TV francesa em 2018. Diversos vídeos do diretor podem ser vistos neste canal do Vimeo.

Galvon mora em Paris e integra o grupo MD18, criado em 2016 para informar à imprensa e à comunidade internacional o que realmente estava acontecendo no Brasil. Leia aqui sobre o grupo. A iniciativa surtiu efeito e conseguiu alterar o noticiário francês sobre o momento brasileiro. Hoje existem outros coletivos brasileiros fazendo esse tipo de resistência em Paris.

Encantado faz ecoar seu título por mais de um sentido. No mais abstrato, refere-se àquele sentimento que dominou o Brasil entre 2002 e 2013, até que as inquietações de parte da esquerda abrissem caminho para a tomada das ruas e das consciências pela extrema-direita. No sentido mais concreto, alude ao subúrbio carioca de Encantado, onde Galvon nasceu e ao qual retorna para tomar como um microcosmo do estado geral do país.

O modesto bairro do Encantado encerra alguns sintomas de degradação que afetam o Brasil de hoje, em especial o Rio de Janeiro: desleixo do poder público, escalada da violência urbana, reações de conservadorismo extremo, êxodo de moradores, casas arruinadas. Num roteiro coeso e muito bem estruturado, o filme relaciona esse quadro local com as grandes questões que abalaram o país nos últimos cinco anos. A falência e o abandono da Universidade Gama Filho fazem as vezes de metáfora da deterioração do tecido social e político brasileiro.

A análise do que levou do encanto ao desencanto é feita por um coral de vozes que incluem jovens participantes do MD18 (alguns que voltaram para militar no Brasil) e figuras de grande repercussão como Vladimir Safatle, Jandira Feghali, Gregório Duvivier, Carol Proner, Márcia Tiburi, Jean Wyllys, Fernando Haddad e Guilherme Boulos. Todos deram depoimentos diretos à equipe do filme. A própria Dilma Rousseff concedeu uma entrevista exclusiva a Galvon, em que discorreu sobre certas razões do golpe, como a recusa a fazer reformas predatórias que seriam empreendidas depois pelo governo Temer e a acusação de “gastança” estatal que ameaçava retirar ganhos das elites.

Haddad lembra de sua desconfiança precoce com os movimentos de 2013, justamente pelo seu viés anti-estatal. Boulos aponta a “janela de oportunidades” que a direita aproveitou para impor o retrocesso após a queda do arranjo de governabilidade do governo Dilma. Safatle chama Temer de “um holograma”, que passou o governo a “uma junta financeira que tomou de assalto o país”. O filósofo francês Alain Badiou também deixa sua contribuição para o debate, apontando o horror das oligarquias ao “parênteses”, representado pelos governos do PT, em seu histórico de dominação do Brasil.

O filme faz um resumo preciso, com reflexões e imagens altamente sintéticas, dos acontecimentos que levaram ao golpe contra Dilma, ao uso político da Lava Jato, à ascensão da direita evangélica e do bolsonarismo, à prisão de Lula e à morte de Marielle Franco. Poucas vezes as linhas de motivação e sequenciamento desses fatos foram tão bem expostas num documentário. Encantado nos esclarece e emociona com a história de um país que, aparentemente, deixou passar sua grande chance de ser feliz.

Finalmente, Filipe Galvon reúne parentes e amigos para se despedir da casa do Encantado, que a família estava deixando para trás. O desencanto, porém, não deixa de ser temperado por uma pitada de esperança numa casa nova, ou seja, num país reinventado. Disso compartilha também Alain Badiou quando retorna, perto do final, para ressalvar “a grande reserva de energia dos brasileiros”. Oxalá ele esteja certo, embora o que contemplamos hoje seja um mais que sombrio desencanto.

>> Publicado originalmente no blog carmattos em 10.7.2020.

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