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Intervenção - Amor Não Quer Dizer Grande Coisa
Direção: Rubens Rewald, Tales Ab'Sáber e Gustavo Aranda  (2017)
Nossos piores fantasmas, por Leandro Saraiva
Fora da ordem, por Raul Arthuso
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Nossos piores fantasmas
por Leandro Saraiva

O primeiro trabalho da colaboração Rewald & Ab'Sáber foi um choque, um alarme de terremoto, infelizmente só sentido em toda sua magnitude quando já estávamos no meio dele. Intervenção - O Amor Não Quer Dizer Grande Coisa, assinado pela dupla e por Gustavo Aranda, membro dos Jornalistas Livres, estreou oficialmente em 2017, no Festival de Brasília, já com Dilma afastada do poder. Mesmo assim, a eleição de Bolsonaro parecia, para quase todos que acompanhavam o noticiário político, uma possibilidade distante e uma piada de mau gosto. A colagem dos vídeos de youtubers de extrema-direita, recolhidos no calor do processo do impeachment, mostrava claramente outra coisa. Foi preciso o horror chegar na sala de jantar, e à rampa do Planalto, para que se parasse de negar a alucinação coletiva exposta no filme.

O mesmo coro de massas sideradas do nazismo, também invisíveis para os alemães elegantes da República de Weimar até que fosse tarde demais, a mesma identificação com o pai da horda – o Mito – por aqueles que renunciam à própria subjetivação, como flagrado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu, dez anos antes da ascensão de Hitler ao poder. A versão brasileira contemporânea usava os meios de comunicação de massa democratizados (que não muito tempo antes eram saudados como arautos da liberdade) e ainda não falava em Bolsonaro, mas clamava por intervenção militar, numa sede de violência e eliminação sumária dos inimigos imaginários, substituição da política por uma mobilização psíquica radicalmente paranoica, que a todo momento, no coro dos heróis virtuais alimentados por uma impotência transmutada em adoração aos pais violentos, passavam à fase do delírio, misturando invasões chinesas e conspirações globalistas.

O flagrante histórico, composto por uma arqueologia digital do esgoto do presente, foi visto por muitos como mero festival de bizarrices, mas infelizmente revelou-se, logo depois, ao mesmo tempo profético e antigo, em sua exposição obsessiva de obsessões históricas, de uma história que não passa, de uma terra que reencena de novo e de novo o seu transe, das ditaduras, de 1964 e de antes, da escravidão, da primeira invasão. Os gritos dos siderados, clamando por genocídio, vinham de nossos inícios, e se projetavam no futuro, numa estrutura de repetição que a forma do filme mimetizava. Aqueles robôs biológicos, protótipos do que viriam a ser os robôs de Bolsonaro, eram também os nossos piores fantasmas.

>> Publicado originalmente na Revista Cult em 28.4.2022 como parte do artigo Rewald & Ab’Sáber, muita dor e algumas delícias.

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