Já Vimos Esse Filme
Direção: Boca Migotto (2018)
O golpe visto do Sul, por Carlos Alberto Mattos
Relevante como documento da sua época, por Marcelo Müller
O golpe visto do Sul
por Carlos Alberto Mattos
A fragilidade da democracia brasileira é o ponto de partida do documentário Já Vimos Esse Filme. Entre a conspiração contra Getúlio Vargas em 1954, o golpe civil-militar de 1964 e o golpe civil-jurídico-midiático de 2016, o que se vê é um país sempre assombrado pela possibilidade de se interromper o curso democrático pelo uso da força ou da intriga. O déja vu estava mais uma vez de volta com as ameaças golpistas de Jair Bolsonaro em 2022, quando foi escrito este texto.
Produzido por um coletivo interdisciplinar em defesa da soberania popular e dirigido por Boca Migotto, Já Vimos Esse Filme apresenta uma perspectiva do golpe a partir de Porto Alegre e um pouco de Brasília. O modelo não difere muito do convencional para esse tipo de documentário. Há uma conjugação de tomadas de rua em manifestações, materiais de televisão e propaganda, e entrevistas com pessoas de vários campos e faixas sociais. Nenhuma delas ocupante de cargo político. Participam professores, historiadores, jornalistas, jovens militantes, o cineasta Giba Assis Brasil e populares como uma enfermeira, um estudante de direito e um homem que, ao contrário de todos os outros, ficou sem identificação.
Nas ruas, os microfones se abrem tanto para quem propugnava a deposição de Dilma Rousseff quanto para quem a defendia. Essa é uma dramaturgia documental clássica do período, na qual os cineastas buscam "dar voz" aos dois lados, independente de sua posição contrária ao golpe, afinal dominante no filme. A expectativa é que as falas golpistas se autodestruam seja pelo absurdo, seja pela visível ignorância ou pelo tom agressivo.
A tradição de golpes no Brasil é abordada muito rapidamente, em especial pelo historiador Bernardo Lucero, que explica como o suicídio e a carta–testamento de Vargas retardaram por dez anos o golpe, que só viria em 1964. O documentário se ocupa principalmente de sintetizar o episódio do impeachment de Dilma a partir do ponto de vista dos porto-alegrenses. Retomam-se as manifestações de 2013 na capital gaúcha e chega-se ao dia da votação do impeachment, quando Giba aponta para a normalidade da vida na rua enquanto o destino do país ia sendo vilipendiado na Câmara dos Deputados.
A omissão e o engajamento da mídia corporativa na derrubada do governo do PT são abordados e exemplificados com os comentários de Arnaldo Jabor na Globo – em apenas quatro dias, ele muda sua opinião de fervorosamente contrária a festivamente favorável aos protestos de 2013. Comenta-se a politização do Judiciário, a falta de representatividade popular do Congresso brasileiro e o papel das redes sociais num golpe que o escritor e jornalista Juremir Machado define como "hipermoderno" porque consumado ao vivo na televisão, com os devidos rituais que simulavam um processo democrático.
A equipe exibiu o filme ainda em fase de produção a estudantes universitários e publicamente na célebre Esquina Democrática, centro de Porto Alegre. Esse material não rendeu o que se esperava de um dispositivo característico do cinema-verdade. Ainda assim, Já Vimos Esse Filme contribui para o mosaico de filmes sobre o golpe por deslocar o eixo de observação para fora do eixo Brasília-São Paulo-Rio e trazer insights sobre o momento histórico que então vivíamos.
O filme conclui com a votação da Câmara que livrou Michel Temer de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal por crime de corrupção passiva. A maioria votou a favor de Temer com a mesma indignação com que votou contra Dilma no ano anterior. Temer, aliás, é lembrado no momento patético de um pronunciamento no Natal de 2017, quando prevê um futuro feliz para o Brasil em 2018. Não foi bem isso o que o seu governo usurpador nos legou.
O filme é dedicado a Marielle Franco e ao motorista Anderson Gomes, assassinados em 14 de março de 2018.
>> Texto escrito especialmente para este site-livro em 26.4.2022.
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