O Mês que Não Terminou
Direção: Francisco Bosco e Raul Mourão (2020)
Sintoma a ser lido, por Bianca Dias
A primeira pedra, por Carlos Alberto Mattos
6 fragmentos de um país em ruínas, por Roberta Mathias
Sintoma a ser lido
por Bianca Dias
O filme O Mês Que Não Terminou, de Francisco Bosco e Raul Mourão, atenta a questões essenciais que, desde junho de 2013, de maneira vertiginosa e caótica, tomaram a cena política nacional. A celeridade dos fatos impede uma leitura imediata, e o que o longa-metragem propõe é um adensamento de pontos de vista distintos, uma possibilidade de inscrição do político e de restauração do debate público a partir do dissenso.
De entrada, é preciso localizar minha posição e disposição em ler o filme, mesmo não concordando com todas as suas premissas. Me parece muito interessante o fato de que os realizadores buscam um pensamento que não implica a coincidência. É uma obra que se arrisca em um exercício corajoso a partir da fala de alguns intelectuais e atores sociais fundamentais; toma as questões levantadas de maneira aguda e reenvia nossa prática política para a ação e, sobretudo, para a tarefa do pensamento que precede qualquer ação ética.
O próprio filme se erige como um gesto político que não pretende uma conciliação ingênua: busca, nas feridas abertas do país, um resgate do sentido de comum, à altura do que pede nosso tempo. Se com o fascismo não se negocia, é preciso que o espaço do dissenso esteja ativado por gestos políticos que possam restabelecer o diálogo ou alguma forma de encontro no campo progressista. Ainda que alianças sejam difíceis, é preciso lidar com a dimensão do impossível, também e sobretudo na política. Situo o impossível, aqui, como ética norteadora de um trabalho que tenta compreender o aspecto turvo da política e as ambiguidades que ela comporta de início – como está em Freud e também em Lacan –, que localiza no impossível aquilo que não cessa de não se escrever.
Se a psicanálise continua a produzir seus efeitos, a arte como forma certeira de ler a cultura também se coloca em cena no filme, entre uma fala e outra, acenando para o disruptivo, para o tremor da linguagem. A escolha de artistas que abarcam um sentido profundo para o político é fundamental para que suas obras funcionem ali como operadoras do impossível na política, e não como mera ilustração. As obras de arte adensam, no filme, o campo enigmático de algo que se coloca como sintoma. Em última instância, é um filme que enfrenta o sintoma de um país: o sintoma que impossibilita pensar e articular o dissenso e o ruído no campo do pensamento.
Muito mais do que uma posição de um ou outro lado do muro, o filme assume a ambiguidade do jogo político com um olhar psicanalítico. Este inclui uma maneira de pensar a cultura, o sintoma, o mal-estar da civilização, a partir de um ponto impossível, de um não-todo, do informe. O que diz Freud – e o filme reverbera – é que os encontros que produzem laços sociais profundos acontecem no dissenso, ainda e por conta dele. Assumir a fratura da própria linguagem é ultrapassar a ruptura incontornável dos nossos tempos, e é também incluir no mesmo campo o heteróclito das muitas vozes e vidas, a pluralidade de opiniões e ações. Para que esse espaço exista, precisamos ler os fatos desde sua opacidade, apostando que a clareza é uma construção coletiva que implica lidar com o ruído e com os tropeços advindos daí. Essa é a força ética e política de um filme que se lança ao diverso.
A resposta encontrada por Francisco Bosco e Raul Mourão está no próprio gesto de perscrutar os caminhos densos e confusos que se iniciaram nas manifestações de junho de 2013. Seu gesto está marcado por uma potência política que consiste na tentativa de ler aquilo que nos acomete: uma leitura que vai se construindo sem pressa e atravessada pela experiência do pensamento e de obras de arte que parecem imantadas pela catástrofe. Os artistas ali presentes parecem guardar em seus trabalhos uma chave secreta para as ruínas de um mundo antevisto. Raul Mourão, Nuno Ramos, Lucas Bambozzi, Marcone Moreira, Daisy Xavier, Lenora de Barros e outros cavam um espaço de instabilidade nas falas, um campo movediço onde cabe incluir o equívoco, o acidente.
Freud dizia que há três profissões impossíveis: a psicanálise, a política e a educação. Sendo profissões da palavra, as três estão tomadas pela impossibilidade de se controlar os efeitos da intervenção. Consentindo com o impossível, o filme perfila eventos distintos a partir de um mês que não terminou e permanece em aberto. Ele se debruça sobre junho de 2013 para entender o ponto germinal de uma série de manifestações públicas e insurgências que, de maneira complexa, acabaram nos conduzindo até aqui. Nesse caldo, a extrema-direita, a partir da figura de Olavo de Carvalho, encontrou voz e organizou ataques e censuras a artistas e pensadores: Queermuseu, Jesus Cristo Travesti, Judith Butler. A tentativa de restaurar o normativo e uma série de retrocessos retornaram na cena política como efeito de um esgarçamento simbólico.
Terceira via
Se há uma dimensão indecifrável em todos os levantes, junho de 2013 permanece incidindo em nossas vidas e na história do país de maneira incontornável. Um mês não resume a história recente, mas pode abrigar as pistas e os detritos de discursos e narrativas que insistem em ocupar lugar central na política: a própria queda da ingenuidade nos fazendo tomar partido diante do impensável e do horror que toma conta da nação. Vivemos, de um lado, movimentos de luta por conquistas sociais, desejo de coletividade e justiça social. De outro, significantes e traços de uma ferida não cicatrizada: o retorno de valores abjetos e totalitários.
Tentando construir uma terceira via (e sabendo que pode fracassar na empreitada), o filme atravessa explosões e implosões de sentido, buscando as perguntas necessárias em movimentos essenciais: feminismo, movimentos sem-terra, estudantes secundaristas organizados, ativismo negro, movimento passe livre. Muita coisa aconteceu desde então e, no entanto, as pautas que se expandiram num ambiente heteróclito não conseguiram evitar o pior: a ascensão da extrema-direita e de um cenário complexo marcado por alterações estruturais na produção e na divisão de trabalho. A falta de enfrentamento do problema das periferias, e dos espaços que estão fora da dinâmica do capital imobiliário, precipitou um vazio de relações que facilitou a entrada da direita religiosa (e não religiosa) em meio ao proletariado, permitindo a penetração ideológica de uma propaganda de “valores” totalmente subjugada a propostas reacionárias e/ou de restauração da moralidade.
Nesse caldo muita coisa surgiu, no fluxo e no contra-fluxo: escola sem partido e escola com pensamento crítico, primavera feminista e assassinato de Marielle Franco, impeachment de Dilma e eleição de Bolsonaro. A direita desarticulada, mas viva em todos os seus valores elitistas e cruéis, encontrou um campo amplo, um grande espaço para crescer vertiginosamente e chegar ao impensável numa eleição presidencial, fazendo eco ao avanço de um movimento de extrema-direita no mundo, numa virada violenta do progressismo neoliberal para um neoliberalismo asfixiante e devastador.
Totem e Tabu
Em determinado momento do filme, os psicanalistas Tales Ab’Sáber e Maria Rita Kehl assinalam a sensação de anomia diante de um quadro profundamente aterrador e invocam a fábula freudiana do pai da horda primeva: onde o apelo ao pai tirano se coloca como leituras possíveis para o desvario que se instalou sorrateiro no seio do pacto civilizatório, rompendo com a mediação de qualquer contrato social e apelando ao tirano como restaurador da lei perdida que vem impor a ordem. Não podemos deixar de lembrar que, no seio das manifestações de 2013 dominadas pela extrema-direita, algo retorna no real: a ferida não tratada da ditadura mostra sua face horripilante, reunindo hordas de “homens de bem” clamando por “intervenção militar”.
Em Totem e Tabu, Freud já revelara o mecanismo fundamental de uma política que nos devolve o horror da barbárie, onde deveriam existir conquistas sublimatórias da civilização. Ele afirma que, na horda primeva, há a presença de um pai violento e ciumento, que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que estes crescem. Ocorre que os irmãos, que isoladamente não têm força para se oporem ao pai, se juntam e cometem o parricídio. Estariam em jogo os fundamentos das organizações tanto sociais, quanto religiosas e morais. Trata-se, portanto, da narrativa épica do advento da modernidade, uma fábula que, como acentua Maria Rita Kehl, aponta para a divisão que o desejo opera e para tensão constante entre seres falantes, que nunca podem desfrutar do todo, do lugar imaginário do pai.
Na dilaceração simbólica que nos trouxe ao impensável, encontramos junho de 2013 como sintoma a ser lido, acolhendo também o inacessível que sempre restará como a sangria que não estanca. E aqui não falo de polarização, outro significante já gasto, mas de divisão: de um lado, a barbaridade; do outro lado, o sonho, a poesia, a civilização, o desejo. Se a imagem de Brasília com muros dividindo os dois lados da manifestação é tão absurda quanto aterradora, ela revela o retrato profundo de um país.
No filme, as imagens da Capital Federal são centrais, diria até estruturantes: o muro dividindo apoiadores de Dilma de apoiadores do impeachment; e o momento em que manifestantes invadem o Congresso e sobem na cúpula. Nesta imagem há uma insurreição: um gesto de criação e também de dissolução. No lugar que é fundamentalmente um não-lugar, onde as construções têm espaços calculados para nuvens, a imagem que se desdobra em tantas: Brasília invadida por uma insurgência. Um acontecimento, no sentido forte da palavra, como o que foi produzido no bojo da imagem, divide o tempo em antes e depois. A política que não se faz no campo dos ideais, mas a partir do real. O real que esburaca esta e tantas outras imagens do documentário, aguçando a capacidade de tocar as linhas de força do presente, um tanto insondáveis, mas entronizadas no seio das relações todas.
No epílogo, como espólio, nos cabe perguntar: o que fica? Ainda que possamos nos livrar do horror que se abateu sobre o país, temos que lidar com a nova ferida de termos criado como nação alguma coisa tão terrorífica. Sabemos que a história só pode ser construída pelas narrativas que produz. Resta-nos, então, um fio de vida e de dúvida como utopia ou resta sempre um rebotalho, a própria poesia a capturar os estilhaços de um tempo e fazer disso invenção. Como no poema de Michaux, que contempla o horror para, quem sabe, em algum momento fazer vicejar o alumbramento.
Os semelhantes florescem
mínimo pássaro do tempo
Nós continuamos, indizíveis
cristais, tremores
O fabuloso desfilando
o extraordinário comum
mas a penitência da incerteza permanece
Novas margens desmoronadas
esforços liliputianos
É preciso apressar-se
A História vai fechar-se.
>> Publicado originalmente na Revista Select em 9.12.2019.
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