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O Mês que Não Terminou
Direção: Francisco Bosco e Raul Mourão  (2020)
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A primeira pedra
por Carlos Alberto Mattos

O documentário de Francisco Bosco e Raul Mourão pode não ser música para os ouvidos da esquerda, mas é o primeiro filme a sustentar enfaticamente que 2013 foi o ovo da serpente para a ascensão da extrema direita no Brasil. Isso já basta para torná-lo importante. 

O filósofo, ensaísta e compositor Francisco Bosco, filho do músico João Bosco e autor do roteiro do documentário, está acima de suspeitas. Foi um quadro leal dos governos petistas e amplamente identificado com as causas progressistas. Tem autoridade para convocar intelectuais de matizes ideológicos diferentes – do liberalismo à esquerda – e pontuar as causas profundas que levaram o “gigante desperto” em 2013 a se travestir no ogro bolsonarista de 2018.

O texto de narração, lido por Fernanda Torres, costura uma série de depoimentos analíticos com citações a pensadores políticos, sem cair no academicismo puro e simples. São argumentações sofisticadas mas claras, que buscam destrinchar a complexidade do que se passou nos cinco anos abordados. Pergunta-se: como uma aparente união em torno de pautas libertárias (das quais tantos como eu duvidamos desde o início) se transformaria na rude polarização da vida política brasileira? Como esse devir retrógrado, para muitos tão claro, pôde se concretizar a olhos vistos?

Bosco procura identificar ganhos democráticos, como as greves, ocupações e movimentos identitários que tomaram corpo após 2013, sinalizando uma repolitização de grandes parcelas da população. Ao mesmo tempo, destaca como esse novo ânimo político foi vampirizado pelas novas direitas a bordo do antipetismo. Nesse ponto, é pena que não sublinhe o papel fundamental da mídia conservadora como sustentáculo da Lava Jato, que muito a propósito é mencionada como plataforma de propulsão do sentimento direitista. A desmoralização trazida pela Vaza Jato não chegou a ser incluída no arrazoado do filme, razão pela qual ainda reste um anacrônico elogio à operação conduzida por Sergio Moro.

 

Não faltam alusões aos erros da esquerda no poder, ainda que à custa do chavão de cobrar autocrítica do PT. Abordam-se também as crises de circunstância que causaram o relativo desgaste do partido, dando margem ao ressurgimento de velhas demandas antidemocráticas. Ainda se discute se a deposição de Dilma Rousseff foi impeachment, parlamentada ou golpe, assim como dois entrevistados tentam justificar tecnicamente as pedaladas fiscais como crime de responsabilidade.

Talvez soe acaciano voltar a esses temas agora que o país virou uma curva perigosa em direção ao abismo. A esse propósito, o documentário oferece uma análise do pensamento econômico liberal e da lógica ultraconservadora. O medo da confusão moral da modernidade leva à regressão a um passado em que a ordem era imposta autoritariamente. É aqui onde brilham as inteligências de Maria Rita Kehl, Tales Ab’Sáber e Reinaldo Azevedo, esse direitista esclarecido.

Essa grande mesa redonda ilustrada ganha os “refrescos” de uma série de performances artísticas de Nuno Ramos, Lucas Bambozzi, Cao Guimarães & Pablo Lobato, entre outros. Calculo que tenha incidido principalmente aí a contribuição na direção do multiartista Raul Mourão, que também participa com um trabalho. A relação entre a arte e o pensamento exposto em palavras é basicamente poética, de sentido muitas vezes obscuro, se é que foi buscada uma relação. Mas é bonita, e funciona como um contraponto à fealdade do processo que destruiu o país desde que 2013 atirou a primeira pedra.

>> Publicado originalmente no blog carmattos em 18.6.2020.

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