O Muro
Direção: Lula Buarque de Hollanda (2018)
Babel sonorizada como filme de horror, por Marcelo Müller
Crônica da polarização, por Carlos Alberto Mattos
Babel sonorizada como filme de horror
por Marcelo Müller
Destoando do comportamento quase totalmente estático e frontal da câmera de O Muro, a abertura deste documentário se dá com o travelling expressivo de uma murada de metal erguida em Brasília, na Esplanada dos Ministérios. O movimento dá a ideia da extensão dessa barreira que visa separar "coxinhas" e "petralhas", supostamente para garantir a inexistência de um conflito e, por conseguinte, a fim de manter a integridade física dos envolvidos. No plano simbólico, esse paredão representa a cisão político-social brasileira, sublinhada pela diferença entre os favoráveis ao impeachment da então presidenta Dilma Rousseff e os alinhados à esquerda. Estes denunciavam os processos jurídicos como parte do golpe para lesar a jovem democracia nacional. A imagem foca no empecilho ao outro lado, enquanto vozes em off e não identificadas destrincham a convulsão que tomou conta do país, perceptível em níveis distintos até hoje, sem término previsto em vista.
O cineasta Lula Buarque de Hollanda propõe uma linguagem documental vizinha da experimental, ressaltando texturas, seja a dos quadros formados por militantes empunhando símbolos de suas lutas, sintomaticamente semelhantes a escudos, ou a dos dizeres que os entrecortam tentando dirimir o caos vigente. Há, também, a alternância entre tons obviamente acadêmicos, com falas articuladas e ponderadas acerca da complexidade em voga, e reproduções populares de chavões e gritos de guerra. Essa polifonia garante o dinamismo que a construção visual deliberadamente nega, criando camadas narrativas que acabam se imbricando para gerar sentidos e reflexões. Embora incorra num processo de repetição contraproducente, e que a ausência de variações traga consigo uma sensação incômoda de pouco avanço, o painel criado paulatinamente é abrangente, sem pender abertamente para um dos vieses dessa contenda constituída de passionalidade.
Outra figura desse cenário político-social polarizado, rapidamente investigada por O Muro, é o “isentão”, o cidadão que não se vê representado necessariamente por ideologias de esquerda e direita, resguardando para si o direito a uma cômoda posição mediana. Excetuando a análise de um homem que prega a virtual impossibilidade de isentar-se diante da situação em que o Brasil se encontra, não é muito estudado esse sujeito que permanece em cima do muro. Passados dos terços do documentário, Lula – o Buarque, não o ex-presidente que, aliás, é mencionado apenas por simpatizantes petistas – decide evadir fronteiras, passando pelos Estados Unidos igualmente divididos, só que entre os apoiadores e os detratores de Donald Trump. Além disso, expande a observação dos muros ao mencionar a sombra do de Berlim e a presença violenta do que separa inapelavelmente israelenses de palestinos. Esse pequeno desvio serve apenas como mera ilustração.
O Muro explora noutra chave o que certos filmes, especialmente documentais, vem abordando diante da crise que assola o Brasil há algum tempo, oferecendo possibilidades de avaliação. Lula Buarque de Hollanda não demonstra ímpeto catequista, tampouco aponta o lado que mais coaduna com suas convicções ideológicas. O filme é uma apuração dessa sanha separatista que, dentre tantos efeitos colaterais, inviabiliza o diálogo e o debate das divergências a fim de atingir metas comuns, como o fim da corrupção, a diminuição da taxa de desemprego, o crescimento econômico, etc. O realizador, por meio de uma deliberação desafiadora, entrega subsídios suficientes para o espectador chegar às suas próprias conclusões, ainda que os enunciados dos quais lança mão estejam totalmente à mercê das preconcepções de quem assiste, sobretudo em virtude da ausência de uma retórica peremptória. A poesia emana dessa babel sonorizada expressivamente como filme de horror.
Publicado originalmente no site Papo de Cinema em 6.6.2018
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