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O Que Resta de Junho
Direção: Vladimir Santafé (2016)
Dossiê antigoverno e antiestado, por Carlos Alberto Mattos 
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Dossiê antigoverno e antiestado
por Carlos Alberto Mattos

De todos os filmes que se debruçaram sobre as Jornadas de Junho de 2013, O Que Resta de Junho é talvez o mais sintomático da grande encruzilhada ideológica posta pelo movimento. Um mesmo discurso atravessa todas as falas dos participantes, independente de suas diferentes nuances e lugares de fala: o discurso antigoverno e eventualmente antiestado.

 

Nem todos se identificam com propostas anarquistas, como as de Camila Jourdan e Emerson Fonseca, criminalizados por 2013. Estes são os mais explícitos em situar o ideário revolucionário que animava as porções mais radicais das manifestações. Porém o coral crítico se estende a uma gama de questões pontuais em evidência entre 2013 e 2015. Havia o desalojamento da Aldeia Maracanã e as remoções no Rio de Janeiro em função das obras para os megaeventos esportivos ("os projetos foram conduzidos sem atentar para os efeitos sociais e as necessidades da cidade", diz Cristóvão Duarte, professor de Arquitetura e Urbanismo).

 

Representantes do Movimento Passe Livre (MPL) sublinham seu histórico de luta e as parcerias que ajudaram a engrossar as Jornadas. Uma integrante do MTST expõe os problemas de moradia e critica o projeto Minha Casa, Minha Vida por empurrar os sem-teto para cada vez mais longe no perímetro das cidades. Um morador da comunidade de Metrô Mangueira externa sua indignação com as remoções. Garis em greve contestam seus patrões. Professores e estudantes se unem na defesa de seus direitos e na luta por dignidade na educação. A reação truculenta das polícias acirrava a lógica do estado policial. O sociólogo marxista Mauro Iasi sustenta que os governos do PT vinham usando uma fina película ideológica para esconder grandes problemas latentes na sociedade.

 

Essa coleta de depoimentos projeta a ideia de que 2013 e seus desdobramentos até 2016 (quando foi concluído o filme) foram uma consequência da ineficácia do governo e, em última instância, da falência do estado para dar conta das demandas sociais. A seu favor, O Que Resta de Junho tenta reunir vozes distintas que se solidarizaram nesse processo, incluindo aí representantes sindicais e de movimentos sociais que nada têm a ver com os anarquistas autodenominados "libertários".

 

Em sua construção bastante deficiente em termos de fotografia e montagem, o filme, contudo, deixa entrever – ainda que talvez inadvertidamente - como a junção ocasional de forças díspares resultaria em catástrofe. Nas sequências finais, um ato em defesa do governo Dilma em 2016 ocupa 1 minuto e 35 segundos, enquanto um ato a favor do golpe toma 3 minutos e 28 segundos, com direito a destaques para o blogueiro Allan dos Santos e o humorista de direita Marcelo Madureira.

 

É doloroso ver como uma parcela da extrema esquerda acabou tendo seus interesses associados aos da extrema direita, ainda que essa não fosse sua vontade. O Que Resta de Junho mostra-se bastante acrítico em relação a isso, sem contar o depoimento de Mauro Iasi no sentido de que o fato de a indignação popular não ter sido "ouvida" pelo governo Dilma teria sido o grande responsável por criar o vácuo que a direita viria a ocupar.

 

Análises enviesadas como essa, emitidas às vésperas do golpe, dizem muito sobre os equívocos que nos levaram ao governo Bolsonaro e à era de ódio que vivemos a partir de 2016. De resto, o filme carece de uma estruturação mais coesa e de maiores cuidados na finalização. O excesso vazio de planos aéreos sobre o Maracanã é uma demonstração da sanha acusatória onipresente e da falta de contraponto razoável.

 

>> Texto escrito especialmente para este site-livro em 3.7.2022.

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