Operações de Garantia da Lei e da Ordem
Direção: Julia Murat e Miguel Antunes Ramos (2017)
Resgate de uma postura de enfrentamento, por Murilo Simões
Resgate de uma postura de enfrentamento
por Murilo Simões
O documentário Operações de Garantia da Lei e da Ordem, de Julia Murat e Miguel Antunes Ramos, foi exibido na Mostra Chamado Realista, contribuindo para os debates acerca do principal tema dessa edição da Mostra de Tiradentes – a pluralidade estética na busca pelo real no cinema brasileiro contemporâneo. Aqui, a abordagem se dá essencialmente na colagem de materiais de arquivo, articulados narrativamente através de cartelas. Trata-se de coberturas jornalísticas de canais do YouTube e de emissoras de televisão a respeito das manifestações de rua no Brasil, em um recorte que se estende desde a grande eclosão em junho de 2013 até a aparente derrocada durante a Copa do Mundo em julho de 2014. Às cartelas, cabe enunciar os passos metodológicos a partir dos quais o governo, a grande mídia e a polícia teriam agido para coibir tais movimentos e progressivamente deslegitimá-los aos olhos da opinião pública.
O longa, portanto, encarrega-se de uma análise dos acontecimentos, assumindo desde o início um ponto de visto crítico, sem se esconder sob o véu de uma suposta verdade imparcial (algo usual na linguagem documental). O procedimento é corajoso, principalmente ao conduzir, através da montagem, o olhar do público pelos recortes apresentados. De um lado, os vídeos de internet, realizados por coletivos e mídias independentes, aos quais o filme se alinha; do outro, o produto televisivo de uma mídia corporativa, em grande medida responsável pelo isolamento político dos manifestantes e consequente criminalização dos protestos (que chegariam, ainda no governo Dilma, a ser tipificados como prática terrorista).
Esta postura de enfrentamento é imperativa desde a época, mas só agora, no governo Temer, é percebida como urgente. Não à toa a codiretora afirma, em debate, ter revisto o material após o impeachment de 2016, muito embora o filme termine em 2014, tendo nessa ocasião inserido as cartelas mencionadas, responsáveis por explicitar o posicionamento da obra no processo histórico (inseriu-se também o pronunciamento de posse de Temer, que cumpre função de epílogo na narrativa). Trata-se de uma percepção talvez tardia, mas ainda imprescindível, de que a verdade está em disputa. E é vital que nós, que através do cinema ajudamos na construção de imaginários, tomemos a responsabilidade pela parte dessa luta que nos cabe.
Neste sentido, o filme em questão acerta ao assumir o seu lugar, mas não é perfeito, acabando por amputar algumas das pautas que levanta. Por exemplo, ao retratar a abordagem policial, ignora relações de classe e de raça, ao mostrar com surpresa um abuso de força que foi percebido em 2013 pela classe média brasileira, mas que é dado desde o início dos tempos para a população negra e trabalhadora. Erra ao não mencionar Rafael Braga, ausência que marca profundamente o próprio recorte proposto pelo filme. É uma análise que embranquece aspectos abordados – e essa autocrítica é basilar se a intenção for fazer parte legítima da reconstrução de imaginários e de lutas outrora pulverizadas.
A eficiência do longa está dada, portanto, menos enquanto leitura de um processo do que enquanto resgate de uma postura mais agressiva frente a ataques que, desde a época do material coletado, aprofundam-se cada vez mais. A imagem apresentada é pura memória, remetendo a lutas que, no momento presente, encontram-se amortecidas. Percebemo-nos esmagados em nossa vontade política e em nossa capacidade de reação. Em muitos filmes da 21ª Mostra de Tiradentes se reflete uma preocupação em manter as nossas pautas vivas, mas em geral olhando-se para dentro, encolhendo-se em espaços e personagens fechados, recolhendo-se às divagações. Precisamos voltar a nos expandir, a atravessar estes espaços, a nos expor e nos impor. É neste sentido que Operações de Garantia da Lei e da Ordem tem a contribuir.
>> Publicado originalmente na revista eletrônica Ganga Bruta em 4.2.2018.