O Povo Pode?
Direção: Max Alvim (2021)
Documentário falha ao omitir a Vaza Jato, por Carlos Alberto Mattos
Documentário falha ao omitir a Vaza Jato
por Carlos Alberto Mattos
Desde que começaram a surgir em 2018, os documentários sobre a mais recente tragédia política brasileira têm procurado sintetizar o processo vivido pelo país a partir de 2013. Cada título vai abrangendo, ainda que com recortes diferentes, montantes progressivos de tempo na tentativa de fazer compreender o que aconteceu a níveis parlamentar, judiciário, midiático, social e econômico.
A tarefa não tem sido fácil, na medida em que os fatos se sucedem, as rodas da história se invertem e fica cada vez mais complicado chegar a um resumo claro e coeso. O Povo Pode?, documentário produzido em 2021 pela Rede TVT, o Instituto Alvorada e a Canal I Produções, com direção de Max Alvim, é mais uma empreitada nesse sentido. Pretende recontar o que se passou "nos últimos seis anos", quando o Brasil trocou as promessas de avanço dos governos do PT pelo retrocesso colorido de fascismo do período Bolsonaro.
A particularidade do filme é não contar com depoimentos de políticos, intelectuais ou artistas. A sucessão de acontecimentos é narrada basicamente por manchetes e apresentações da mídia corporativa (com poucas inserções da mídia independente) e por pílulas de um narrador onisciente de voz impostada. O lugar de comentaristas é ocupado por quatro personagens populares. A ideia é verificar como o processo político rebate em pessoas mais ou menos comuns, mas com atuação política relevante em suas comunidades.
São elas o baiano João Pires, militante do MTST; a sergipana Maria Izaltina, ativista quilombola sergipana; e as pernambucanas Vani Souza, formanda em História e ligada ao movimento de pequenos agricultores, e Aurieta, religiosa que mobiliza a população de Brasília Formosa, em Recife. A cada passo do processo histórico, Max Alvim volta a elas para ouvir suas impressões. Em comum entre elas, além do trabalho de base, é a convicção de que o povo vivia melhor antes do golpe de 2016 e de que só o povo, saindo às ruas, pode trazer a decência de volta ao país.
O espectro de acontecimentos é amplo, partindo do impeachment de Dilma Rouseff, passando pelos escândalos "deixados pra lá" no governo Temer, a Lava Jato estimulada pela mídia e pelo Departamento de Justiça dos EUA, a perseguição a Lula, sua prisão e retirada da candidatura, a Vigília Lula Livre e sua libertação 580 dias depois. Chega-se até os estragos do governo Bolsonaro em várias frentes, a passagem de Sérgio Moro pelo ministério e a sabotagem das medidas de combate à Covid 19.
Em termos historiográficos, a grande falha do documentário é passar ao largo da Vaza Jato, que não é sequer mencionada. Dessa forma, a reviravolta fabulosa que tivemos nos destinos do país por conta da atuação de Walter Delgatti e de The Intercept Brasil aparece como um passe de mágica. Da maneira como é narrada, a suspeição de Moro, a libertação de Lula e todas as suas consequências seriam fruto de uma inexplicável tomada de consciência do STF. Uma fala indignada de Gilmar Mendes e chamadas de jornal citando Fachin assumem importância de protagonistas, quando sabemos que eles foram levados ou pelo constrangimento diante das revelações da Vaza Jato ou, no caso de Fachin, por um erro de cálculo na intenção de proteger Sérgio Moro.
Afora esse pecado fragoroso, O Povo Pode? tem intenções melhores que o resultado. As imagens e o som são submetidos a intervenções incessantes, quando não expõem uma iconografia icônica (desculpem o pleonasmo) do Nordeste. O filme acerta ao localizar ali o principal foco de resistência democrática a nível popular e eleitoral. São nordestinas as quatro figuras centrais, além do próprio Lula, que é um quinto personagem, por assim dizer um personagem-referência. O projeto, aliás, nasceu do desejo de registrar a Caravana Lula pelo Brasil, na qual o ex-presidente visitou 56 cidades do Nordeste em 2017.
Como análise do processo político, não chega a configurar uma perspectiva original, além de se basear por demais no noticiário da mídia empresarial que funcionou como instrumento do golpe. Mesmo assim, considerando-se que estamos em uma campanha eleitoral tão decisiva para o nosso futuro, o filme pode engrossar o coro da informação anti-horror. Muito do que se vê ali é como um desses memoriais que nos recordam o que não pode voltar a acontecer.
>> Texto escrito especialmente para este site-livro em 18.7.2022.