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É Tudo Mentira
Direção: Coletivo No Pasarán (2014)
O avesso da mídia, por Bruno Carmelo
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O avesso da mídia
por Bruno Carmelo

As manifestações de junho de 2013, motivadas inicialmente pelo aumento das passagens de ônibus, constituíram o movimento popular de maior amplitude no país nos últimos anos. Era de se esperar que o cinema se apropriasse de um fato político tão relevante e apresentasse a sua versão dos fatos, já que as reivindicações e as consequências dos protestos abriram margens às interpretações mais distintas.

 

Rio em Chamas e Junho – O Mês que Abalou o Brasil foram alguns documentários produzidos sobre o tema, e agora chega aos cinemas É Tudo Mentira. A proposta é ainda mais radical dos que os seus antecessores: ao invés de reivindicar a autoria artística, o filme é realizado pelo coletivo No Pasarán, cujos membros anônimos apresentaram a obra com máscaras no rosto durante a Semana dos Realizadores 2014.

 

Do ponto de vista da produção, o documentário é pouco sofisticado, limitando-se a colar diversas imagens obtidas através de celulares, câmeras de segurança e câmeras escondidas, com seus registros tremidos, amadores, pixelizados. Não se busca novos depoimentos, imagens metafóricas, efeitos de som ou montagem. Este é um filme da era da Internet, feito com imagens públicas à disposição, e construído de maneira urgente. Um único computador e um programa de edição simples devem ter bastado para completar o longa-metragem.

 

A precariedade, no entanto, produz um efeito estético condizente com a posição política do grupo. Afinal, a intenção não é demonstrar grande conhecimento estético, e sim usar o cinema como um veículo de comunicação qualquer (não melhor ou pior do que celulares, computadores, televisores e afins) para transmitir uma mensagem de denúncia. Este é um cinema ideológico e utilitarista, que acredita na conscientização de seu público através de imagens chocantes costuradas por uma narrativa envolvente.

 

De fato, É Tudo Mentira oferece um ritmo dinâmico e agradável. Por se associar aos principais coletivos que registraram imagens não oficiais durante as manifestações (como a Mídia Ninja), os diretores tiveram acesso a vídeos excelentes, comprovando a violência abusiva dos policiais, a fraude na incriminação de manifestantes, o discurso enviesado das grandes redes de televisão e a tentativa de transformar protestos em crimes. Os momentos de humor e de revolta, regados a trilha pop rock pulsante, sugerem que a sensação de estar nas ruas não é muito diferente de participar de uma grande festa a céu aberto.

 

Como documento político de esquerda, o documentário constitui um arquivo precioso de imagens e discursos, além de um painel sombrio da relação venenosa entre governos conservadores, mídia defensora do patronado e uma polícia truculenta e despreparada. No entanto, estas escolhas implicam também uma perda do aprofundamento do discurso: os manifestantes são mostrados como bravos guerreiros inocentes, enquanto toda forma de autoridade é representada como tirânica e mal-intencionada.

 

O maniqueísmo de É Tudo Mentira acaba por transformá-lo no avesso perfeito dos telejornais e revistas que ele pretende criticar: enquanto a grande mídia tratava os manifestantes como monstros, agora os próprios manifestantes despejam as acusações de monstruosidade à grande mídia. Sabe-se pouco, no final da projeção, sobre as origens dos protestos, sobre a sua apropriação pela direita, sobre o seu término ou mesmo sobre as particularidades entre cada cidade ou região. O filme trata de massas, de grandes movimentos (a direita contra a esquerda, o povo contra o governo, progressistas contra reacionários) e, por estas escolhas, perde as particularidades que fizeram de junho um movimento diferente de outros existentes no país.

>> Publicado originalmente no site Adoro Cinema em 9.12.2014.

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