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A Fantástica Fábrica de Golpes
Direção: Victor Fraga e Valnei Nunes (2022)
Documentário escancara tradição golpista do Grupo Globo , por Camilo Vannuchi
A Globo no banco dos réus, por Eduardo Nunomura
O dedo na ferida do golpismo, por Carlos Alberto Mattos
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Documentário escancara tradição golpista do Grupo Globo
por Camilo Vannuchi

Algumas coisas não mudam. Outras mudam muito pouco - e muito mais morosamente do que poderíamos suportar. Talvez esta seja a mais incômoda das múltiplas conclusões que afloram dos 105 minutos do filme A Fantástica Fábrica de Golpes, ainda inédito no Brasil. Dirigido pelos jornalistas Victor Fraga e Valnei Nunes, soteropolitanos radicados em Londres, o documentário teve sua primeira exibição pública em Paris, no início de outubro, e acaba de estrear no Festival de Cinema de Havana, no último domingo (5/12/2021). Chico Buarque, Dilma Rousseff, Glenn Greenwald, Geoffrey Robertson e Adolfo Pérez Esquivel são algumas das personalidades entrevistadas no longa, que investiga a influência dos meios de comunicação no recente esgarçamento da já debilitada democracia brasileira.

A fábrica de golpes à qual o título se refere é a TV Globo. Ou, mais do que ela, o Grupo Globo, haja vista a capilaridade de um conglomerado de mídia que mantém seus tentáculos em áreas diversas, como um jornal diário, uma editora de revistas, canais de TV abertos e por assinatura, rádios AM e FM, uma gravadora, uma produtora de filmes e até uma fundação sem fins lucrativos com projetos nas áreas de educação e cultura.

Desde 1925, ano em que o jornalista Irineu Marinho fundou o jornal O Globo e faleceu em seguida - para desespero do marrento (e covarde) primogênito, Roberto Marinho, que na juventude gostava de resolver conflitos no braço, atacando normalmente pelas costas e em grupo - o grupo atua também na produção de golpes. Numa das primeiras cenas do filme, o jornalista Altamiro Borges, do Núcleo de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, lembra que carros do jornal O Globo foram apedrejados por populares após o suicídio do então presidente Getúlio Vargas, em 1954. O diário fazia tamanha oposição ao Governo Federal, atacando invariavelmente suas decisões, inclusive a instituição do salário-mínimo e a criação da Petrobras, que a insurgência dos apoiadores de Vargas contra o Grupo foi automática. "Contra a justiça da revisão do salário-mínimo se desencadearam os ódios", escrevera ele em sua carta-testamento. "Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente."

Em 1964, novo golpe, mais uma vez sob os auspícios do Grupo. "Ressurge a democracia", estampou a manchete do Globo por ocasião da derrubada de João Goulart pelos militares insurretos. "Vive a Nação dias gloriosos", celebrava a chamada na primeira página. "Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradição." Seguiram-se 21 anos de corrupção, vassalagem, censura, autoritarismo, desmonte do Ensino público e gratuito, pauperização, terrorismo de Estado, tortura, exílio, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres.

O sangue nas mãos permaneceu incrustado entre os dedos e sob as unhas da família Marinho até a publicação de um tímido mea culpa no jornal, somente em 2013, reconhecendo que o "apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro". No mesmo texto, no entanto, o editorialista buscava diluir a responsabilidade da empresa lembrando que outros diários também apoiaram o golpe civil-militar. E justificava o posicionamento do jornal pondo a culpa na suposta "radicalização" de João Goulart - uma espécie de "e o PT? e o Lula?" da época.

De nada serviu o mea culpa. Não demorou nem três anos e lá estava o Grupo Globo, com o Jornal Nacional à frente, entrincheirado no apoio figadal ao golpe político-midiático de 2016. "A grande imprensa foi protagonista", afirma a deputada federal Benedita da Silva. "Mas também não teria sido viável só com ela", emenda Dilma Rousseff. "O que a mídia fez foi se articular numa aliança. Ela participou de um projeto de derrubada de um governo eleito", acrescenta a presidente golpeada. Segue-se um inspirador plantel de jornalistas e políticos, cada um com sua análise, colando os caquinhos da lambança promovida, entre 2015 e 2018, por partidos derrotados nas urnas, Ministério Público e Polícia Federal, um juiz de primeira instância, um conglomerado de mídia e representantes do capital. Roberto Requião, Jean Wyllys, Jan Rocha, Breno Altman, Marcia Tiburi, Celso Amorim, Ricardo Melo, Ana Mielke e Raimundo Pereira são alguns dos especialistas que analisam o período compreendido entre o impeachment de Dilma e as denúncias feitas pelo site Intercept Brasil e conhecidas como Vaza Jato, passando por todo o processo de beatificação de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, criminalização e prisão de Lula e eleição de Jair Bolsonaro - período que a cineasta Petra Costa classificou de vertigem da democracia.

A Fantástica Fábrica de Golpes pode ser interpretado como uma continuação do ora cult Muito Além do Cidadão Kane (1993), documentário britânico que tratou, de forma muito assertiva, da colaboração da Globo com a ditadura e do poder que aquela emissora tem - ou tinha, trinta anos atrás - em manipular a opinião pública, a ponto de eleger e derrubar presidentes, como ocorreu com Fernando Collor de Mello (1990-1992). A sensação de continuidade é reforçada pela presença, no filme de Victor Fraga e Valnei Nunes, de uma entrevista com John Ellis, produtor do documentário de 1993, e por imagens reproduzidas daquele filme, entre as quais um depoimento em que Leonel Brizola comparou Roberto Marinho a Stálin. "Quem não concorda com ele, ele manda pra Sibéria", dizia o ex-governador do Rio de Janeiro.

Agora, a menos de um ano da eleição, a mesma Globo emite sinais de que já definiu seu candidato. Muito Além do Cidadão Kane e A Fantástica Fábrica de Golpes, sobretudo se vistos em sequência, são pedagógicos ao mostrar que não há nada de extraordinário no fato de o tal candidato ser um dos responsáveis pelo atual colapso da democracia no Brasil: um ex-juiz de primeira instância julgado parcial pelo STF, que não hesitou em confabular com a promotoria para condenar um réu que deveria tratar com isenção e ética, que tramou para tirar da disputa eleitoral o candidato favorito nas pesquisas a fim de favorecer um entusiasta da tortura e, finalmente, que não titubeou em tirar a toga e virar ministro de um governo genocida, de olho numa vaga no Supremo e no próprio umbigo. Algumas coisas não mudam.

>> Publicado originalmente no portal UOL em 9.12.2021.

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