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Alvorada
Direção: Anna Muylaert e Lô Politi (2021)
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O lado oculto da primeira presidenta do Brasil
por Raquel Dutra

A história de 2016 é uma encruzilhada repleta de contradições, e qualquer obra que decide mergulhar nesse imbróglio precisa saber lidar com elas. Enfrentar ou render-se são as duas opções mais prováveis, mas Alvorada encontra a mítica terceira via diante da polarização. Ao invés de brigar ou se perder entre os impasses e perder tempo perseguindo um juízo de valor na figura da ex-presidenta, o filme cria seu próprio tom e entra no ritmo dos eventos com seus contrastes narrativos, seguindo a direção conflitante da própria realidade que registra, e criando assim uma obra cheia de camadas, inteligente e perspicaz. 

As filmagens são diretas, frias, intrusas e despojadas, mas suas imagens entregam significados no exato oposto: Alvorada é repleto de metáforas, nunca inconsequente, próximo e que cria uma relação entre o espectador e seus personagens. O cenário já é um componente importantíssimo e arquitetura brasiliense fala por si só. Os espaços, grandiosos e modernos, expressam frieza e angústia, em contraste com a intimidade que o filme busca. Sem uma palavra, o documentário discursa.

Com esse plano de fundo, Muylaert e Politi aproveitam até para justificar suas escolhas ideológicas, em palavras vomitadas por justamente quem? Ele mesmo, o inominável. O próprio serve ao filme, encurta um debate inseparável e explica o porque chamamos o impeachment de Golpe com seu discurso no púlpito da votação do processo, quando ainda ocupava uma cadeira na Câmara dos Deputados ao invés de desgovernar o país, e exaltava a memória de um dos torturadores de Dilma no período da Ditadura iniciado pelo Golpe Militar. Equiparando a natureza dos eventos, ele se coloca ao lado dos que saíram ganhando com a desgraça da democracia brasileira: “perderam em 64, perderam agora em 2016“.

Pelo contexto político complicado agravado pelo ambiente social naturalmente misógino, era de se esperar uma Dilma Rousseff enfurecida – assim como era ilustrada na mídia – e magoada – assim como diziam ser uma mulher na situação em que ela estava. Mas Alvorada mostra que essa pessoa nunca é encontrada dentro daquela residência presidencial. Algo estranho até mesmo para a proximidade da direção de Muylaert e Politi, que interferiam vez ou outra no cotidiano da presidenta em algumas conversas diretas.

Você está no eixo nessa situação – Nota uma das diretoras.

– Não tenho a menor ideia [de como]. Nunca fui diferente disso. Eu não desequilibro. Inclusive, teve uma época em que eu me esforcei pra entender como o outro desequilibrava, porque era importante pra você não julgar ninguém. Porque as pessoas que eu gostava estavam desequilibrando. Como é que você gosta de uma pessoa que desequilibra e não julga ela? Só entendendo que é da vida, dar uma desequilibrada, não segurar a barra…

– Nem na cadeia [no período da Ditadura]?

– (…) Poucas [pessoas] desequilibravam – Dilma responde.

Nesses momentos, a seriedade de Alvorada é quase satírica. De repente, o temperamento da ex-presidenta, sempre uma questão para o sexismo da mídia, da sociedade e da política, mostra, na verdade, que não poderia ser mais apropriado. No meio de egos enormes e homens que transformam tudo que é possível em algo sobre eles mesmos, o emocional de Dilma simplesmente não reagia à altura, separando muito definitivamente as coisas, mesmo em um dos momentos mais delicados de sua vida.

O equilíbrio inabalável da personagem principal de Alvorada acrescenta mais uma camada ao filme, que se contenta com o fato de que seu desejo de intimidade não será totalmente concretizado. Os momentos íntimos das poucas conversas diretas com as diretoras mostram uma espontaneidade atraente e sabedoria brilhante. Mas também existe uma vibração de tensão palpável no ar, criando um contraste na persona da ex-presidenta, que externa e institucionalmente, se expressa de forma engessada, firme e distante.  

Em um momento, ela debate Arte e História do Brasil, cita José Saramago e Guimarães Rosa. Suas amarguras e revoltas ficam de fora de todas as conversas, onde ela se ocupa em divagar sobre a figura do diabo, que para ela, é “uma criação intrigante”. E no meio da tensão, diz que não acredita no mal, porque nós somos muito frágeis para sermos maldosos, passa pela equipe de gravação e pelos profissionais da imprensa e pergunta: “vocês ‘tão’ bem?”.

Mas conforme o processo avança, ela vai se distanciando do filme, do palácio e da presidência. Ela passa pelas câmeras coçando a cabeça, sem dizer nada, sequer olhando para o caminho. Aos poucos, Alvorada acompanha o momento em que Dilma Rousseff deixa de ser uma figura política atual e se transforma numa figura histórica, menos próxima, e mais mítica. Ela sabia separar as coisas, e cada passo à frente na assimilação do fim de seu mandato é um passo atrás de seu contato próximo com o filme.

As coisas no ecossistema presidencial, no entanto, continuam acontecendo. Então, o próprio espaço se transforma num personagem de Alvorada. Do formigamento do subsolo, o desespero no térreo e o vazio do primeiro andar, o palácio imponente que é lugar de morada e de articulação política é capturado pelo olhar de Muylaert e Politi como um organismo vivo, que perde seu ritmo conforme o seu coração se enfraquece. Abatido, mas imparável.

Enquanto o futuro do país é decidido no Senado, o Palácio aparece vazio e Alvorada se preenche com o resultado da votação do impeachment. No total, 81 senadores votaram; 61 para o fim do mandato de Dilma Rousseff, e 20 para a permanência da presidenta. Não houve nenhuma abstenção.

E então, assistimos o caos se instaurar nas entranhas do Palácio da Alvorada. Assessores, chefes de gabinete, cozinheiras e camareiras caem no choro, mas quando a presidenta passa, todos parecem se lembrar do equilíbrio, endireitam a postura e disfarçam a linguagem corporal perdida. O discurso dela finalmente mostra alguma rachadura, e ela tremula ao constatar publicamente mas também para si mesma que acabaram de derrubar a primeira mulher eleita presidenta do Brasil. 

Processo encerrado, Alvorada se aproxima de seu fim junto dos últimos momentos do governo de Dilma Rousseff. A notificação oficial chega no palácio e é recebida por um assessor, mas os informantes insistem em entregá-la pessoalmente. Depois de pintar e bordar com a constituição e os preceitos democráticos, os representantes do Golpe se preocupam com o cumprimento de um suposto protocolo em que a presidenta deve assinar o documento na frente deles. Aqui, em seus últimos suspiros, Alvorada ainda encontra espaço para refletir sobre a própria noção de poder. 

Para o documentário, ele é cheio de pompa, se impõe, acompanhado de protocolos e obrigações. Ele precisa se afirmar. É uma energia tão implicante e egóica que só pode ser expressivamente masculina. A mesma que transforma uma sessão de depoimentos seríssima e urgente num show de horrores. Enquanto, cinco anos atrás, a primeira presidenta do Brasil passava horas e horas respondendo perguntas inúteis para uma legião de parlamentares que nem com as melhores respostas do mundo mudariam o curso daquela história. 

O fim do fim assume uma leitura épica. A jornada atribulada do governo se encerra, o frisson no palácio se aquieta, o nosso vínculo com a personagem histórica de Dilma Rousseff é findado e aquela noite interminável onde o Brasil pisoteou nos preceitos democráticos e se esbaldou em misoginia finalmente acabou. Os governantes seguem suas atividades, agora com um deles ocupando a cadeira presidencial; o Alvorada se reorganiza; a ex-presidenta se muda para longe do antro de ataques; e o Brasil segue como sempre foi.

Mas no movimento da virada do dia, virada do governo, virada de era, Alvorada termina de descascar as camadas dos eventos de 2016. O que acontece na escuridão toma quase todo o filme, porque é de fato muito importante, mas a chave está no amanhecer. Quando a luz ilumina tudo o que está escondido e não permite mais a permanência de qualquer forma de disfarce. Quando ficção nenhuma importa frente à realidade. Quando as intenções dos atos são reveladas, quando as verdadeiras faces são expostas.

Para esse árduo trabalho de fuçar cada instante e lugar do sistema do Golpe, podemos confiar nas nossas cineastas. Esse ambiente não é um lugar para levianos, não é um lugar para iniciantes e não é um lugar para análises rasas. Seja no silêncio coberto do ocaso ou no brilho reluzente da alvorada, nada escapa de quem “não tem nada a esconder”.

Parte de um texto publicado originalmente no site Persona - Jornalismo Cultural em 1.7.2021. 

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