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O crepúsculo de um palácio
por Carlos Alberto Mattos

Chega, enfim, o filme que fecha o ciclo do chamado “cinema do golpe”. Depois de O Processo, Democracia em VertigemExcelentíssimos, é a vez de Anna Muylaert e Lô Politi apresentarem seu olhar sobre os três meses e meio em que a presidenta Dilma Rousseff, afastada do cargo, aguardou a decisão final do Senado sobre o seu impedimento. A condição sui generis de uma mandatária restringida ao seu lugar de moradia reverbera no filme, que nunca sai do Palácio Alvorada ou de seu entorno muito próximo.

Mais que sobre Dilma, este é um filme sobre essa condição. Os amplos espaços do palácio ganham protagonismo. Com frequência, Dilma é vista apenas percorrendo seus corredores e salões, ou através de paredes de vidro. Em vários momentos, Anna e Lô dão destaque ao funcionamento da “casa” pelo trabalho de cozinheiros, jardineiros, ajudantes, servidores de limpeza e funcionários de diferentes níveis. Sem falar na pantomima dos dragões da independência, que parece tão patética quanto as emas do gramado.

O Alvorada não é o lugar de presidir o país, mas naquele período se transformou em bastião de uma resistência muito tênue, frequentado por políticos, juristas e representantes de movimentos populares. Tampouco é uma casa acolhedora. “Isso aqui não é lugar de morar”, reconhece Dilma numa de suas poucas falas para a câmera. Ainda na mesma conversa, distribuída por várias partes do filme, ela discorre sobre a elite escravocrata brasileira, que se julga diferente do povo, e sobre a banalidade do Mal. “Eu admiro muito o personagem do diabo”, afirma citando Milton e Saramago. “Acho que o Mal é um produto da ficção. Nós somos muito frágeis para sermos tão maus”.

O fato é que Dilma, por natureza, não se acomoda bem num documentário de observação. “Eu não sou um personagem”, diz, insinuando que o filme deveria ser sobre o que acontecia com ela e com o país. Um filme mais histórico que pessoal.  Ela aparece reclamando da câmera “invasiva e excessiva” das cineastas. Por duas vezes a vemos abanar as mãos mandando interromper a gravação de conversas supostamente reservadas. Numa cena que escapou a esse crivo rigoroso, ela discute com Aloizio Mercadante sobre a redação de um documento, dando mostras da proverbial dureza com que tratava seus colaboradores. Ao mesmo tempo, era a forma de impor seus pontos de vista num mundo tradicionalmente dominado por homens.

Frases peremptórias como “Não renuncio” e “Eu não me desequilibro” sublinham a firmeza de caráter da ex-presidenta. Em entrevistas à imprensa, ela não perdia a oportunidade de reafirmar a ilegitimidade de Michel Temer como presidente interino e anunciava as “sérias decorrências” que o golpe haveria de ter para o país. Transparece claramente a consciência de que estava empenhada numa disputa de narrativas para o futuro.

À falta de um acercamento pessoal mais íntimo de Dilma, o que Alvorada acrescenta a esse panorama do “cinema do golpe” é a radiografia desse limbo político em seu locus específico. Uma bela sequência mostra a aflitiva arguição de Dilma no Senado sendo acompanhada na televisão por funcionários nas diversas dependências do palácio. O empacotamento dos bens e a despedida da equipe têm o sabor amargo de um despejo.

Como os outros filmes aqui citados, esse também suscita um misto de raiva e tristeza. Mas também ressalta a dignidade da ex-presidenta durante o processo. A partida de cabeça erguida e sorriso nos lábios contrasta com o urubu que não encontra o caminho de saída e se bate contra o vidro numa das últimas cenas. Saía Dilma, entravam os urubus. Bem a propósito, a música de Villa Lobos embala uma tragédia que ia muito além daquele momento político.

Nunca o nome de um palácio foi tão discrepante do que abrigava como o Alvorada naquele momento. Ali começava a grande noite em que meteram o Brasil.

>> Publicado originalmente no blog carmattos em 29.5.2021.

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