Amigo Secreto
Direção: Maria Augusta Ramos (2022)
Amigo Secreto, amigo urso, por Luiz Zanin
Inimigos declarados, por José Geraldo Couto
Vaza Jato. Contexto, por Carlos Alberto Mattos
Filme de Guta Ramos contrapõe Vaza Jato à Lava Jato, por Maria do Rosário Caetano
Amigo Secreto, amigo urso
por Luiz Zanin
O Brasil não é para principiantes, dizia Tom Jobim. Nem para apressados. Existe um esforço para entender o que vem acontecendo a este país desde 2013, mas é notório que precisamos de um tempo de sedimentação e reflexão para começarmos a compreender como e por que nos metemos nesta flagrante trajetória rumo à barbárie.
Um esforço nesse sentido está sendo feito, tanto por artistas quanto intelectuais e pensadores. Livros são lançados, seminários online, lives, discutem freneticamente a questão, desde o ano fatídico de 2018. Amigo Secreto, o novo documentário de Maria Augusta Ramos, é a mais recente manifestação desse trabalho coletivo, um tijolinho adicional para a compreensão, a meu ver ainda embrionária, dessa etapa disruptiva da história brasileira.
Como um país entra em rota de suicídio? É difícil mesmo entender. Isso estava aí, como um tumor sorrateiro, ainda não detectado, e que se espalhou ameaçando o organismo? Ou surgiu de repente, sem anunciar, e, quando vimos, a metástase já havia acontecido? Ou o caso brasileiro não pode ser tomado de maneira isolada, mas no contexto internacional de ascensão da direita, inclusive nos Estados Unidos e países europeus? Dúvidas.
Maria Augusta já havia feito O Processo, sobre a condução do impeachment de Dilma Rousseff, e não por acaso adotou o título de uma das obras mais conhecidas de Franz Kafka. Como Josef K., entramos num labirinto judicial no qual não se conhece direito a acusação, mas se sabe, desde o início, que a condenação é certa. Ah, velho Kafka, como você intuiu o nosso presente?
Agora, em Amigo Secreto, trata não apenas do passo seguinte do processo e de sua conclusão lógica, mas de uma empresa que imantou e determinou a construção política que começa com a derrubada do governo de Dilma e termina com a ascensão da extrema-direita e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Trata-se, claro, da Operação Lava-Jato, que prometia extirpar a corrupção do país e terminou em fiasco clamoroso. O troféu principal – o ex-presidente Lula – foi libertado e suas sentenças foram anuladas na justiça; hoje lidera as pesquisas para a eleição presidencial deste ano. Seu líder máximo, o ex-juiz Sérgio Moro, foi desacreditado, assim como o midiático promotor Deltan Dallagnol e outros expoentes da operação.
Ao longo do processo, a Lava-Jato parecia sólida como o Pão de Açúcar. Tinha apoio incondicional da mídia e da classe média. Jogava na chave da corrupção, que abre as portas para golpes desde a UDN de Carlos Lacerda. Moro era vestido com os trajes do Super-Homem em capas de revistas. Tudo que faziam era certo e ninguém ousava contrariá-los, pois quem podia ser contra o combate à corrupção? E assim as formalidades foram sendo atropeladas, em nome de um suposto “bem maior”. Por pouco a Lava-Jato deixou de abiscoitar uma fortuna em multas para criar uma fundação nacional de combate à corrupção, sob seu comando, naturalmente. Seria uma espécie de Estado dentro do Estado.
Tudo isso derreteu como sorvete no calor, e muito por força daquilo que ficou conhecido como Vaza-Jato – o vazamento de conversas entre os procuradores e que terminaram por desacreditar a lisura do processo judicial, conforme atestou o Supremo Tribunal Federal.
O documentário de Maria Augusta observa o trabalho de jornalistas do The Intercept (Leandro Demori) e do El País (Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi), que receberam o vazamento de um hacker, filtraram e checaram informações e passaram a divulgá-las. Fizeram jornalismo de primeira e isso o país lhes deve.
O título do filme vem do nome de um grupo de mensagens de Whatsapp ou Telegram, nos quais os procuradores trocavam ideias. Comunicavam-se de maneira desenvolta, com uma euforia turbinada talvez pelo sucesso do momento. Uma dessas trocas de mensagens é particularmente significativa. Uma estátua de Cristo, esculpida pelo Aleijadinho, teria sido furtada pelo presidente Lula. Quando o assunto surgiu na lista, exultaram. Era o tipo de notícia ideal para comover a opinião pública, para ser manchete de todos os jornais e telejornais no dia seguinte. Quando confirmam que a “notícia” era falsa, não esconderam a decepção. O clima não era de sóbria apuração da verdade, mas de torcida, com a parcialidade em que se decide primeiro que alguém é culpado e depois vai-se em busca de provas para incriminá-lo. Nenhum país civilizado resiste a uma Justiça estruturada desta maneira. No entanto, foi o que tivemos no Brasil durante um bom tempo. Vale insistir: sob o olhar benevolente, cúmplice ou indiferente de boa parte da sociedade, em particular da sua “elite”.
No documentário há o trabalho de observação dos jornalistas, mas também entrevistas e material de arquivo. A fala mais destacada tem sido a de Alexandrino Alencar, ex-executivo da Odebrecht. De fato, é esclarecedora de algo que já se desconfiava. Ele afirma que os promotores exigiam que falasse de Lula para que sua delação premiada fosse aceita. Não queriam outro assunto ou nome. Apenas este: Lula, Lula e Lula – o alvo real do procedimento.
Se tomarmos isoladamente, muitas das cenas do filme são conhecidas. Um dos interrogatórios de Lula por Moro abre o documentário. Há cenas do Congresso, o discurso de Lula quando libertado, um curioso debate entre ministros do Supremo, trechos da famosa reunião ministerial com Bolsonaro destemperado (pleonasmo), etc. São selecionadas e montadas de modo a expor o panorama político dos últimos anos. A maneira como tudo é encaixado nos fornece uma sequência coerente, embora tétrica. Uma “narrativa”, termo demonizado que, no entanto, quer apenas dizer a disposição estrutural de uma obra ou de uma linha de pensamento para expressar uma história, uma ideia ou tese.
Vale dizer que não existem narrativas definitivas em ciências humanas. Mas há consensos possíveis, levando-se em conta a verdade factual e a consistência com que os fatos são articulados e interpretados. Por exemplo, ainda há muito a pesquisar sobre a Segunda Guerra Mundial, que no entanto terminou em 1945. Mas não dá para dizer que a Polônia invadiu a Alemanha e não o contrário. Não é possível afirmar que o partido nacional socialista fosse de esquerda. Não dá para negar a existência de campos de concentração e extermínio. Enfim, não é possível brigar com os fatos de maneira sistemática. Eles, os fatos, são pesados e vingativos.
Assim como 2 e 2 são 4, assim como a terra é redonda e a água ferve a 100 graus, é impossível não ver que a Operação Lava-Jato se comportou como uma forma peculiar de administração da justiça, que tinha um propósito e este era de cunho político. O filme torna isso explícito. Dá forma a uma verdade que qualquer pessoa de boa fé podia deduzir da marcha dos acontecimentos. No filme, ela está exposta em seus detalhes, como evidência límpida de si mesma.
Esse arranjo de fatos, imagens, depoimentos e entrevistas faz com que o documentário Amigo Secreto seja um importante registro dessa nova época transviada. É valiosa contribuição para entendermos um pouco mais nossa condição e momento histórico. Fica também como legado às gerações por vir. É bem possível que brasileiros do futuro se espantem, ou mesmo se divirtam, ao ver como vivíamos nós neste louco século 21. As farsas e desmandos a que éramos submetidos, a facilidade com que nos deixávamos enganar, os falsos ídolos que chegamos a adorar. Fomos dignos de riso. Ou de piedade.
>> Publicado originalmente no blog Cinema, Cultura & Afins em 20.6.2022.
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