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Amigo Secreto
Direção: Maria Augusta Ramos (2022)
Filme de Guta Ramos contrapõe Vaza Jato à Lava Jato, por Maria do Rosário Caetano
Vaza Jato. Contexto, por Carlos Alberto Mattos 
Amigo Secreto, amigo urso, por Luiz Zanin
Inimigos declarados, por José Geraldo Couto
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Filme de Guta Ramos contrapõe Vaza Jato à Lava Jato
por Maria do Rosário Caetano

Amigo Secreto, o décimo longa documental da cineasta brasiliense Maria Augusta Ramos, radicada na Holanda, chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 16 de junho. Quem conhece pelo menos três dos filmes anteriores de Guta – O Processo, Juízo e Justiça – sabe que ela é uma cineasta em busca da reflexão, nunca o sensacionalismo, que gosta de observar à distância e não interferir no que está acontecendo.

Em Amigo Secreto, Guta segue de olho no Brasil contemporâneo. Pode-se dizer que este novo filme – sobre as descobertas da Vaza-Jato a respeito dos bastidores da Lava-Jato, operação hipertrofiada pela imprensa, elites e Judiciário – funciona como uma sequência de O Processo, registro do “golpe parlamentar”, que derrubou a presidenta Dilma Roussef.

Guta Ramos encontrou o nome de seu novo filme numa das linhas ocultas de comunicação entre uma das vertentes da Força Tarefa de Curitiba, que tinha no procurador Deltan Dallagnol um de seus artífices.

Os participantes virtuais da “Amigo Secreto” chegaram a investigar se Lula teria furtado um Cristo Crucificado, atribuído ao Aleijadinho, do Palácio do Planalto. Afinal, encontraram pistas na imprensa de tal (e suposto) furto. O tal crucifixo aparecia (em fotos) sobre a cabeça de Itamar Franco quando este ocupara a presidência da República e também sobre a de Lula. Mas desaparecera misteriosamente.

Havia suspeitas de que Luiz Inácio Lula da Silva a roubara. Os “Amigos Secretos” ficaram muito decepcionados quando descobriram que as pistas eram falsas. Não daria para levar o “ladrão de obra do Aleijadinho” direto para a cadeia. Mesmo assim, não perderam o ânimo. Continuaram procurando outros caminhos para atingir seu objetivo (prender o ex-presidente e, consequentemente, retirá-lo da corrida eleitoral).

O documentário de Guta Ramos começa em 2019, com o “paladino da Justiça”, o juiz de primeira instância Sergio Moro, depois de abrir mão da toga, já no cargo de ministro (da Justiça, claro) do Governo Bolsonaro. Naquele momento, registrava-se o vazamento de mensagens trocadas por ele (o ex-juiz de Maringá) com procuradores e autoridades da República. A endeusada (pela imprensa, pela elite brasileira, pela magistratura e por parte significativa do eleitorado) Operação Lava Jato sofrerá, então, o primeiro e grande abalo em sua credibilidade.

Dois veículos – as representações brasileiras do The Intercept, dos EUA, e El País, da Espanha – tomarão a dianteira das denúncias, vazando conversas secretas de procuradores e juízes. Conversas que revelam procedimentos totalmente descabidos, combinações indevidas, acertos indecorosos, investigações direcionadas etc.

Um grupo de jornalistas — formado por Leandro Demori, Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi — acompanha os desdobramentos do caso, enquanto o país mergulha em sequência de crises que começa a ameaçar a sua frágil democracia.

A Folha de S. Paulo, que integrara a sinfonia pró-Lava-Jato, dispõe-se a publicar, também, transcrições das gravações secretas. Os outros veículos da grande imprensa têm atuação discreta, modesta, se comparada com a cobertura torrencial dos anos em que o juiz de Maringá transformara-se em super-herói, verdadeiro justiceiro, aquele que, nos moldes de uma personagem da Marvel, varreria a corrupção da História brasileira.

Amigo Secreto segue a proposta básica do cinema de Guta Ramos, que é ser observacional. Mas mostra-se, cada vez mais, híbrido. Nesta décima viagem documental, depois de acompanhar, com o devido distanciamento, o trabalho do repórter do The Intercept Brasil e das repórteres do El País, a cineasta recorre a abundantes imagens de arquivo, que montadas organicamente por Karen Akerman, nos ajudam a dar sentido a materiais fragmentados, com os quais fomos bombardeados (ou não, pois muitos foram escondidos – como o esclarecimento que Lula fez questão que Moro, mesmo contrariado, ouvisse). E, por fim, o filme chega a tempos ainda mais recentes, com imagens de defensores do ex-presidente que passou mais de 500 dias preso. De forma indevida, reconheceu o Supremo Tribunal Federal.

Veremos, também, imagens do atual presidente (aliás relembrado com sua corte de auxiliares na infame reunião em que um de seus ministros propôs que se “passasse a boiada enquanto a imprensa só tinha olhos para a pandemia”).

Muitas imagens do filme já foram vistas na TV ou em outros documentários. Mas em Amigo Secreto, elas são recontextualizadas e não se fazem acompanhar da infame e editorializada vinheta acusatório-global (aquela da boca de esgoto jorrando dinheiro enlameado). Elas voltam com serenidade, com tempo para reflexão. Guta não tem pressa. O filme dura 131 minutos.

No momento mais revelador de Amigo Secreto, o ex-executivo da Odebrecht Alexandrino Alencar conta que seus inquisidores da Força-Tarefa só valorizavam suas respostas se elas dissessem respeito ao ex-presidente Lula e a seus familiares. Se ele, Alexandrino, desse informações sobre recursos entregues, via caixa 2, a Aécio Neves, por exemplo, seu testemunho não provocava nenhum interesse.

Guta Ramos não tem nenhum interesse pelo cinema de “cabeças falantes”. Ela não sai atrás de pessoas consideradas especialistas neste ou naquele assunto para delas colher um “depoimento” esclarecedor ou definitivo. No máximo, estabelece uma conversa e dali retira pontos que possam iluminar aspectos polêmicos. Em Amigo Secreto, advogados, como Carol Proner, falam do lawfare (ou guerra jurídica usada como arma legal para obtenção de fim escuso), enquanto funcionários da Central Única de Petroleiros, ligados à luta histórica da Petrobras, desmontam argumento basilar de Moro e Dallagnol.

Ex-juiz e ex-procurador, ambos virtuais candidatos ao Parlamento, alegam que a Lava-Jato devolveu aos cofres públicos 6 bilhões de reais. Os petroleiros contra-argumentam, no filme, que tal “resgate” é nada, se comparado com as perdas que a empresa e o país tiveram por causa da mesma Operação e que chegou “à casa dos trilhões”. Inclusive com multas arbitradas por autoridades norte-americanas e pagas em dólares.

Espectadores saturados com os desvãos tomados pelo país desde 2013 poderão angustiar-se com Amigo Secreto, com o repassar-reviver de momentos e cenas dolorosas. O filme, realmente, não é fácil de assistir. Mas é necessário. Porque num tempo de tanta futilidade, de tantas celebridades, de tantos “tutoriais” disso e daquilo, ver uma cineasta tentando entender o que se passa em seu país, sem se apossar de “mecanismos” pré-estabelecidos, é estimulante. Mesmo que doloroso.

>> Publicado originalmente na Revista de Cinema em 14.2.2022.

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