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Ressaca
Direção: Vincent Rimbaux e Patrizia Landi (2019)
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A dança da fome
por Carlos Alberto Mattos

Vergonha. Esse é o sentimento que compartilhamos com uma moradora do Rio que passa rapidamente diante da câmera no documentário Ressaca. Vergonha de ver os bailarinos do Theatro Municipal dançando em troca de cestas básicas e vales refeição, dirigindo Uber para sustentar a família e contando trocados que recebem de doações. Vergonha por ser este um documentário assinado por um francês radicado no Brasil, Vincent Rimbaux, e pela brasileira Patrizia Landi em coprodução com a França, capitaneada no Brasil pelo produtor PH Souza. Não deixa de ser um exemplo de como o Brasil – e mais especificamente um falido Rio de Janeiro – estão sendo vistos das fronteiras para fora.

A crise na cultura brasileira pós-golpe de 2016 é mais que pano de fundo para o drama do nosso principal corpo de baile, que então completava 80 anos de existência. Enquanto acompanhamos as reuniões, os ensaios e apresentações do grupo, assim como o rumo de três personagens emblemáticos, vemos o rebatimento de fatos como as denúncias de corrupção contra Michel Temer, choques entre manifestantes e policiais, a intervenção militar no Rio, a morte de Marielle Franco, o incêndio do Museu Nacional e as notícias de um estado em bancarrota. A Cinelândia é o ponto para onde deságuam todas essas linhas narrativas, num mix bem engendrado de arte e política.

A primeira bailarina Márcia Jacqueline está de partida para Salzburgo por falta de condições para tocar aqui sua carreira. O primeiro bailarino Filipe Moreira faz bico no Uber enquanto sua mulher, também bailarina, sonda notícias sobre o pagamento dos salários atrasados. João, veterano porteiro do teatro, se vira como pedreiro e pintor quando não está entre os mármores da casa de espetáculos, que ele compara ao céu.

 

Vincent e Patrizia adotaram um modelo de construção documental em que a observação é convertida em dramaturgia. Depois da apresentação dos três personagens e da situação geral do corpo de baile na conjuntura política da época (2017-2018), emerge um bloco denominado “Revolta”. Nele, os bailarinos se lançam às ruas com sua arte para denunciar a penúria em que vivem e pedir o apoio da população – eventos que fecham o também importante documentário Corpo de Baile, produzido pela Unirio em parceria com o Municipal. O desmonte é tal que leva os bailarinos a terem de cancelar uma apresentação do Quebra-Nozes já com os ingressos vendidos.

Um último bloco, intitulado “A Queda”, faz convergirem três momentos pouco felizes dos personagens centrais, evidenciando de modo cabal as intenções do filme na esfera do storytelling. Talvez haja aí um ligeiro excesso de arquitetação dramática, especialmente ao olhar dos puristas do documentário. Mas nada que traia o projeto na forma como ele procura criar sentidos políticos e humanos para um quadro de crescente degeneração da cultura em nosso ambiente.

Os excelentes trabalhos de fotografia (preto e branco, a cargo do próprio diretor) e edição (Vincent, Patrizia e Miguel Kruschewsy) dão ao filme uma fatura de primeira classe, a não ser por alguns momentos de captação de som que deixam a desejar. De resto, é um flagrante que nos consterna por esfregar em nossa cara o que deixamos acontecer com as melhores coisas que tínhamos neste país.

>> Publicado originalmente no blog carmattos em 21.12.2019.

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