Ressaca
Direção: Vincent Rimbaux e Patrizia Landi (2019)
O balé: política e intimidade, por Filippo Pitanga
A dança da fome, por Carlos Alberto Mattos
Cenário agonizante, por Marcelo Müller
O balé: política e intimidade
por Filippo Pitanga
O segundo longa-metragem da Mostra Competitiva Íbero-Americana do 29º Cine Ceará foi o documentário Ressaca de Patrizia Landi e Vincent Rimbaux, sobre a crise atual na cultura contada através do desmantelamento a afetar nos últimos anos o prestigioso Theatro Municipal do Rio de Janeiro – com equipes de artistas e músicos sem receber e sem verba para montar espetáculos que seriam destinados à própria população.
Um importante e necessário documento e registro de uma causa, e que acaba muitas vezes invisibilizada, mesmo quando aparece nas mídias, devido ao enorme fluxo de absurdos que se aglomeram no momento, deixando o espectador entorpecido e ataráxico, sem reação. E talvez seja esta uma das maiores funções do cinema que, ao se distanciar de ser mais uma pauta perdida no jornal, consegue destacar e engrandecer com linguagem artística própria, sendo uma obra integral e enriquecedora por si só, para além de falar sobre outras artes contidas no relato. Ou seja, Ressaca presta um serviço humanitário ao mesmo tempo em que coexiste como obra própria, passível de ser avaliada para além da questão cuja voz está aqui para ampliar.
Talvez seja irônico falar sobre destacar a obra documental como uma peça de arte, mesmo que feita a partir de uma pauta jornalística bastante saturada no fluxo diário da enxurrada de pautas de desmantelamentos culturais que andamos vivendo, pois o próprio gênero documental sempre foi muito associado a características jornalísticas. Claro, este é um estigma antigo e que cada vez mais se distancia da verdade até mesmo para o senso comum. Grandes documentaristas brasileiros e mundiais elevam o patamar de se fazer um registro documental para um conceito artístico e até poético, como o consagrado e saudoso Coutinho ou mesmo cineastas contemporâneas como Petra Costa. Mas o fato é que de todas as escolas do gênero, Ressaca talvez não existisse se não fosse a abordagem íntima e pessoal, diferente do que se pensa do distanciamento de outrora.
A equipe de Ressaca, formada unicamente por seus dois diretores, Patrizia e Vincent, de fato fazem um trabalho hercúleo em acompanhar estes artistas do Theatro Municipal não apenas em sua vida profissional, mas na íntima também, desde a privacidade de suas casas e até mudanças radicais de vida como viagens para trabalhar em outro país, pela falta de oportunidade no nosso. Vários personagens vão se desdobrando a partir de algumas cenas introdutórias muito bem aplicadas para nos contextualizar, como as de assembleias realizadas entre os membros das equipes do Theatro, muitas vezes conflituosas, refletindo pontos de vista divergentes perante a crise.
Mas é quando o filme começa a destacar personagens que de fato começamos a acompanhar o psicológico individual de cada um com o qual possamos nos identificar – mesmo que às vezes se dê vontade igualmente de seguir um pouco mais algum outro personagem, como o violinista mais sindicalizado da equipe, com uma consciência do coletivo bem mais elaborada e representativa. Não que o drama pessoal dos personagens pinçados não seja interessante, pois é, e também se torna responsável por engajar o espectador na telona, mas como são muitos pontos, sempre haverá coisas que ficarão de fora.
A decisão do escopo abarcado segue desde as reuniões das equipes à casa de cada um dos protagonistas escolhidos para se guiar a trama, até culminar no clímax do filme, quando a arte vai às ruas, ocupando esquinas do Centro do Rio com “artivismo” (arte + ativismo). Foram vários membros do Theatro tocando em via pública, outras pessoas dançando balé, e até tenores cantando na famosa confeitaria Colombo (o que toca ainda mais pessoalmente a todos que estavam lá presentes, como este que vos escreve).
Este belo gesto é também algo importante como divisor de águas em Ressaca, pois faz descer um pouco a discussão sobre o direito do acesso à cultura a todos, e não apenas a uma elite que antes costumava ser mais prestigiada com este patamar da arte clássica. A arte é um direito de todos, e o acesso a ela é uma obrigação da administração pública em prover a todos, inclusive àqueles que não seriam contemplados normalmente. Além disso, uma segunda parte destes ativismos segue alguns dos artistas que se juntam às manifestações mais politizadas, aquelas em que policiais disparam balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio, fazendo com que os próprios cineastas se exponham ao perigo em tomadas arriscadas no meio do conflito, mas que ao mesmo tempo demonstra o nível de engajamento e imersão necessários que eles alcançam em lealdade com os retratados.
O que acompanhamos, portanto, é um retrato íntimo necessário, de desdobramentos na vida pessoal de cada artista (focando principalmente no corpo de balé), de modo a entendermos o quanto suas vidas são devastadas – culminando em algumas das mais belas cenas, como a da apresentação de despedida da última temporada (já sem verba) de “Carmina Burana”, quando a técnica do filme se permite debruçar totalmente na linguagem de cinema e estourar a música numa plenitude divina entre espectador e espetáculo da vida real. Isto por si só e a arte dos retratados já faria valer a pena ligar a câmera direta, sem interceder muito, algumas vezes com filmagens do fluxo conforme ele acontece, porém as escolhas subjetivas e artísticas dos realizadores também agregam, havendo uma clara preocupação humanista para além do retrato frio e objetivo, seja na hora de acompanhar as danças não apenas como movimento e sim como um raio X comportamental, ou mesmo nos intervalos de respiro do puro ócio, que é quando vemos o espelho da alma de alguns retratados.
Isso se nota especialmente com a decisão de seguir mais de perto o único protagonista que não é do corpo do balé, e o personagem que de fato eleva Ressaca para outro patamar bem diferente do que apenas falar de um ponto circunstancial da crise atual, que é a elitização das artes que desde sempre teriam sido excludentes para boa parte da população, mas que em sua origem deveria nascer e regressar do povo para o povo. É o personagem do "Seu" João, porteiro do Theatro, que devolve esta perspectiva à arte – pois a partir dele e de sua família é que vemos do que é feita a grandeza que tantos admiram ali, pois é feita do cotidiano dos trabalhadores, do dinheiro dos contribuintes, que deveria financiar a arte para todos. Esta é a real e grande catarse contida no filme.
>> Publicado originalmente no site Almanaque Virtual, em 10.12.2019.
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