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580 Dias - A Prisão e a Volta Triunfal de Lula
Direção: Joaquim de Carvalho e Patri Salgado (2022)
Os dias em que o coração do Brasil pulsou em Curitiba, por Carlos Alberto Mattos
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Os dias em que o coração do Brasil pulsou em Curitiba 
por Carlos Alberto Mattos

A prisão de Luiz Inácio Lula da Silva em 7 de abril de 2018 tem sido um dos assuntos principais de filmes sobre o processo político brasileiro recente, como Democracia em Vertigem, Lula Lá: de Fora pra Dentro e a minissérie A Trama. Agora nos chega um longa-metragem inteiramente dedicado àquele episódio que envergonha a história judicial do país. 580 Dias: A Prisão e a Volta Triunfal de Lula é uma produção independente bancada principalmente por leitores do site Brasil 247 e usuários da TV 247.

 

O diretor Joaquim de Carvalho, experiente e destemido repórter investigativo, volta a aventurar-se no campo do documentário depois de realizar filmes sobre esse momento político, como Delgatti – o Hacker que Mudou a História do Brasil, Bolsonaro e Adélio – uma Fakeada no Coração do Brasil e A Grande Farsa – Como Moro Enganou o Brasil e Ficou Rico. Dessa vez ele buscou parceria com Patri Salgado, que assina com ele a direção e responde pela edição do filme.

 

Mais que explorar as possibilidades da linguagem do documentário, os filmes de Joaquim pretendem oferecer documentos abrangentes e aprofundados dos temas que aborda. 580 Dias reúne testemunhos em sua maioria de juristas e militantes de movimentos sociais para recontar o período em que Lula esteve encarcerado na sede curitibana da Polícia Federal e a sua libertação em 8 de novembro de 2019.

 

O próprio Joaquim de Carvalho aparece como se fosse mais um entrevistado e, junto com os advogados Cristiano Zanin e Marco Aurélio de Carvalho, remonta aos antecedentes da prisão, quando a Lava Jato tentava, por expedientes ridículos, prender Lula em flagrante. A conivência do STF, as pressões da mídia corporativa e dos militares, além de interesses estadunidenses no pré-sal emolduravam o golpe em Dilma e a prisão política de Lula que viria em 2018.

 

A estada do ex-presidente em Curitiba e a instalação e resiliência da Vigília Lula Livre fazem o coração do filme. Ouvimos, então, depoimentos bastante pessoais de quem testemunhou os momentos cruciais do episódio, como a tentativa dos agentes policiais de algemar Lula no avião, a violência da polícia contra os apoiadores de Lula na sua chegada à PF e as primeiras comunicações do ex-presidente com o mundo através de seu assessor Marcola.

 

O diretor-repórter colhe as memórias de moradores próximos à Vigília, que se incomodavam ou apoiavam os frequentadores. Os ecos do cotidiano da Vigília, organizado pelo MST e pela CUT, rendem momentos emocionantes do documentário. Um deles é quando a dona de casa Regiane, vizinha afetuosa dos acampados, lê uma carta que recebeu de Lula em resposta à sua. Formava-se ali uma mística de solidariedade e humanismo, ilustrada sonoramente por cantos, rezas ecumênicas e os coros de "bom dia", "boa tarde" e "boa noite" para Lula ouvir de sua cela. Eu mesmo presenciei essa comoção, entre a tristeza e a energia boa, nas três vezes em que fui do Rio a Curitiba para participar um pouco daquela onda de zelo pelo ex-presidente.

 

Os advogados que visitavam Lula diariamente e o assessoravam nas tarefas jurídicas e na assistência pessoal sem qualquer remuneração nos contam detalhes inéditos. Lula ouvindo cantos gregorianos em alto volume, por exemplo, ou exigindo mais organização nas informações que lhe chegavam em clippings e pendrives. Para os visitantes ilustres que chegavam, Lula sempre tinha uma palavra de conforto, como se o outro fosse o sofredor. Aos acenos de prisão domiciliar, tornozeleira eletrônica ou negociação para redução de pena, ele respondia sempre com um "não" definitivo. Não trocaria sua dignidade pela liberdade.

 

Falas preciosas incluem o relato do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, o"Mococa", sobre o momento em que Lula se decidiu por Fernando Haddad como seu substituto na candidatura de 2018. Ou dos advogados que presenciaram a dor de Lula ante a notícia das mortes do seu "irmão" Sigmaringa Seixas, do irmão Vavá e do neto Arthur. Todas as irregularidades cometidas contra Lula são repassadas, como as proibições de comparecer ao funeral de entes queridos e a desautorização do despacho do desembargador Rogério Favretto no sentido de libertar Lula em julho de 2018.

 

A "volta triunfal" prometida no subtítulo não se efetiva no filme, que se limita a recuperar a Vaza Jato e a saída da prisão, bem como registrar a criação do Museu da Lava Jato, os prejuízos causados ao país pela desastrada operação e a herança da Vigília Lula Livre representada pelas Marmitas da Terra, criadas pelo MST do Paraná. Em matéria de roteiro, 580 Dias se mostra um tanto irregular, com circunstâncias importantes tratadas muito rapidamente (o interesse estrangeiro pela Petrobras e a importância de Janja no período, por exemplo) e alguns pormenores situados fora do lugar.

 

Mas o que mais deixa a desejar, a meu ver, é a quase total ausência de arquivos audiovisuais da Vigília. Um acontecimento tão rico em imagens e sons, e intensamente registrado em todo tipo de mídia, merecia presença vigorosa junto às cabeças falantes ou mesmo cobrindo muitas falas. Sua falta grita o tempo todo no filme. Vale mencionar aqui a opção declarada dos diretores por se ater aos testemunhos, uma vez que o uso mais extensivo dos materiais de arquivo equivaleria, segundo Joaquim, a impor sua visão. 

 

Lula, Janja, Gleisi, Haddad e outros protagonistas não participam diretamente do elenco, o que demonstra o interesse pelos que presenciaram os fatos pelo viés do trabalho, do ativismo e da assistência pessoal. É uma escolha compreensível, afinal.

 

Um aspecto que chama atenção é a abertura e o encerramento do filme com William Bonner anunciando no Jornal Nacional a decretação da prisão em 2018 e a desobrigação de Lula com a Justiça em 2022. A TV Globo, um dos adversários principais de Lula, degustava a primeira notícia e era forçada a reconhecer a segunda. De um lado, isso coloca a emissora como legitimadora mor – porque popular - de que Lula "nada deve à Justiça", o que seria prestigiá-la indevidamente. Por outro lado, é um indicador do fechamento de um ciclo na Globo, não mais 580, mas 1603 dias depois. 

 

>> Publicado originalmente no blog carmattos e no site Brasil 247 em 5.9.2022.

 

    

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